Conto O MISTÉRIO DE SERRA ALTA

O MISTÉRIO DE SERRA ALTA

José Gomes Neto chegou ao final de carreira quando a iniciava.

Ingressou na polícia como investigador e foi lotado em Serra Alta. Havia escolhido a profissão para desvendar grandes crimes, paixão alimentada que chegava ao fim.  

Estava em Serra Alta.

Cidade pequena próxima à divisa com a Argentina. Uma réplica de cidades antigas do interior da Alemanha construída por imigrantes. Deixara de conviver com os pescadores do mar descendentes de açorianos, como ele, para estar entre os de origem alemã. Eram incompreensíveis, notou na primeira reclamação. O senhor Hans chegou acompanhado do próprio vizinho causador da queixa:  

- “O Fritz ser burra...eu xingar mulher dele... ele bater minha mulher”

Fritz se explicou:

- “Eu não ser burra. Hans ser mais forte”

O senhor Hans concordou. Deram as mãos, não foi preciso lavrar a ocorrência policial.

A cidade seguia o costume camponês europeu.

Deixavam as residências para trabalhar no campo antes do alvorecer e encerravam ao anoitecer. Fechavam-se em suas casas deixando as ruas desertas.

O comércio pequeno abria as portas apenas aos domingos de manhã à hora que se encerrava o culto na igreja. O pastor, peludo de dedos grossos, fazia a leitura da bíblia em alemão.

Uma casa de quatro cômodos incluindo o sanitário servia de Posto Policial. Contava com cozinha, sala de espera e por último a sala do delegado. Nesta havia duas escrivaninhas, a maior para o delegado a menor, portando antiga máquina de escrever Remington, para o escrivão.

O delegado, lotado em São Miguel do Oeste a 80 km, aparecia de duas em duas semanas. Sua visita era de poucos minutos, apenas para confirmar a inexistência de ocorrência.

No dia a dia o investigador acumulava a função de delegado. E, José Rosa, soldado negro, solteiro, a de escrivão e mecânico. Ele tinha paixão pela viatura, um jipe Wyllis, modelo militar ano 1951, estacionado à frente da delegacia.

José Gomes consumia o dia na poltrona em um canto escuro da sala acompanhando o noticiário em um velho rádio. Era o soldado no front na escuta do comando, a Jovem Pan de Florianópolis, para se manter informado.

- “Xará! Soltaram o Lula....”

O soldado não se importou.

O investigador voltou a insistir mais uma, duas vezes. Recebeu como resposta o gesto com as duas mãos e cara de desdém, como se dissesse: “o que tenho com isso?”, na melhor hipótese. A outra hipótese seria, “pare de encher o saco”. 

- “Vai se foder!” Reagiu.

O grito foi a sentença transitada e julgada. Desistiu para sempre de tentar ressuscitar aquela cidade morta. O soldado Rosa foi a última esperança que se esvaiu.

Os dois eram o Estado presente na cidade, um representante da Polícia Militar e ele da Polícia de Civil, tinham que se entender como instituições e se entendiam pelas cachaçadas noturnas.

Tornaram-se inseparáveis e adesistas ao costume local. Os “alemães” reservavam as noites para esvaziar garrafões e a cidade amanhecia mal-humorada

O tino investigativo de Neto o levou a concluir o porquê saiam antes do sol para o trabalho e eram de pouco falar.

- “Ressaca. O cara fica de saco cheio. O mal-estar é grande e se calam”.

Magda, finalmente, se engravidou ao final do governo Temer.

Haviam se casado na metade do segundo governo Lula.  Os ares da altitude, exatamente, mil e seiscentos metros teriam feito bem à saúde da esposa dada como infértil.

Nesse decênio, somente, a ocorrência familiar modificou a rotina, uma novidade. Jamais teve notícias de nascimento de criança, até então. Mudara-se para Serra Alta para nada. Absolutamente, nada de anormal acontecia. O curriculum de investigador se mantinha intacto com folhas em branco.

Sentia-se estrangeiro, dizia para Magda, estava condenado ao exílio em seu próprio país.

Notava que a cidade se definhava. Casas abandonadas tomadas pelo mato. A população era invisível e estava diminuindo com os mortos e desaparecidos. O último prefeito sumiu e não teve substituto. Ninguém mostrou interesse nem se importou com o fato.

O soldado Rosa atingiu o tempo de caserna entrou para a reserva e se despediu da cidade. Magda voltou para a casa dos pais em Itajaí quando estava prestes a dar à luz.

Estava em abandono, solitário, preso nas próprias circunstâncias, as mudanças na vida de Magda e Rosa advieram destas. Eram sinais de luz ao navegante como o farol da Barra de sua infância, teve saudade e aflição. Perdia tempo.

Trancou a casa e se mudou para o Posto Policial.

Ela pertencia agora ao reflorestamento comandado pela natureza que avançava sobre o meio urbano de Serra Alta a recuperar a paisagem de antes do Descobrimento.

Dias depois, se abalou para São Miguel do Oeste. Foi solicitar à chefia transferência com argumento da maternidade da esposa.

O próprio delegado Belmiro Marques, chefe regional da Polícia Civil, o atendeu e informou ser impossível a pretensão.

José Gomes se descontrola, pede demissão.

- “O senhor será preso nessa condição”, respondeu o doutor Belmiro e explicou:

- “Está suspenso todo processo de admissão, demissão voluntária, transferência. Somente nos casos de doença grave, invalidez permanente ou morte é possível.  Ninguém pode deixar a atividade sob pena de prisão. Todos funcionários têm que fazer sua parte na aliança pelo Brasil e entender que a pátria está acima de todos”.  A fala como de general de exército coagiu José Gomes que calou e se viu sem saída.

- “Vou te dar um presente muito útil para você”, abriu a gaveta e retirou uma bíblia doando-a para José Gomes.

- “Leia, estude, reflita, você encontrará a resposta para todas suas dúvidas e momentos difíceis. Lembre-se que Deus está acima de todos. Ele está no leme da nação. Aleluia!”.

Doutor Belmiro demonstrava a outra face da personalidade, a de pastor evangélico que se dedicava à recuperação religiosa nos presídios.

José Gomes manteve-se pensando na sua volta a Serra Alta tomada de floresta. Fixou os olhos no doutor Belmiro, viu a figura de um jesuíta como Anchieta e ele transformado em índio.