Este é um portal Web da comunidade de residentes, nos anos 60, do CRUSP (Conjunto Residencial da USP, na Cidade Universitária de São Paulo). É um espaço de informação, preservação de memória e interação entre os que lá residiram entre 1963 e 1968 (quando foi fechado pela ditadura militar). Na madrugada de 17 de dezembro de 1968 as tropas do exército cercaram o CRUSP, prenderam 1400 estudantes, fecharam o Conjunto Residencial e instauraram um IPM – Inquérito Policial Militar, que resultou em processo e ordem de prisão para 32 residentes.
Reproduzimos abaixo um texto sobre essa época de resistência e aventuras.
A HERANÇA CRUSPIANA
por Carlos Eduardo Baldijão e Márcia Furquim de Almeida
Vivemos no CRUSP entre 1.966 e 1.968 quando este foi fechado pela ditadura militar com o uso de tropas do exército, em dezembro de 1968. A vida cruspiana marcou a vida de todos nós que lá moramos. O CRUSP era um grande espaço de debate cultural e político. Foi espaço de debate dos grandes temas políticos e culturais da época com seus principais atores.
O famoso Circo de Moscou fez uma apresentação especial para os moradores do CRUSP e estudantes da USP em geral. A Banca de Cultura oferecia uma gama de publicações de esquerda que alimentavam nossos debates. Plínio Marcos estava sempre por lá. Inclusive para vender seus livros, o que fazia porque ficava impedido de encenar suas peças, sempre censuradas pela ditadura.
Havia, também, muita alegria. Seja pelos famosos bailes do CRUSP que atraiam muitos jovens universitários de toda grande São Paulo, seja, também, pelos gritos de Tarzan, todas as noites, exatamente à meia noite, seguidos de uma gritaria generalizada por vários minutos, seja pela procura de espaço para namorar em baixo dos blocos, até instalarem as “lâmpadas anticoncepcionais”, seja pelos mergulhos na, então chamada, “schistossoma beach” hoje Raia Olímpica. Vale lembrar da moça misteriosa que à noite ia para a escada de incêndio do Bloco A embrulhada em um lençol, e que, a pedidos, abria o lençol mostrando seu lindo corpo com o rosto protegido pela penumbra. Era muito aplaudida. Não podemos nos esquecer da divertida programação da rádio montada pelo Camões, estudante da Poli.
Embora a atividade política no CRUSP tenha sido sempre intensa, foi por ocasião da invasão, pela repressão da ditadura, da Faculdade de Filosofia, na rua Maria Antonia, em 1.968, que o CRUSP passou a ser o centro político do movimento estudantil. O CRUSP já era cenário de grandes assembléias da universidade e do movimento estudantil. As grandes passeatas de setembro de 1.966, a famosa “setembrada”que reuniu milhares de estudantes no enfrentamento da repressão, foram organizadas em assembléias realizadas no CRUSP.
O movimento estudantil não se amedrontava. Foi a partir do CRUSP que se organizou o Congresso da UNE em Ibiúna. Foi a fase de massas do Congresso. É claro que a repressão infiltrava seus espias no movimento estudantil e muitos deles foram identificados e denunciados. Com o recrudescimento da repressão e da resistência do movimento estudantil, o CRUSP tornou-se uma cidadela da resistência.
Para entrar no CRUSP era necessária identificação junto às barreiras montadas pelo movimento. Em uma ocasião, em julho de 1968, no encontro das casas de estudantes, foi detida uma viatura da repressão e foram aprisionados os policiais que nela se encontravam. A viatura foi queimada. Pode parecer algo sem nexo ou loucura do movimento estudantil. Em certo grau, até foi. Mas, a violência da repressão empurrava o movimento estudantil para a radicalização das ações. Não havia, no horizonte, a mais mínima perspectiva de abertura política. A ditadura se tornava cada vez mais violenta e era necessário resistir. O 1º de maio oficial, de 1.968, na Praça da Sé, convocado pela ditadura, com todo o aparato militar para garantir a presença de suas autoridades, foi tomado pela organização estudantil e operária. As autoridades foram expulsas do palanque e se refugiaram na Catedral. O palanque foi queimado e a praça tomada pela multidão que protestava.
Foi organizada, então, uma grande passeata que se dirigiu até a Praça da República onde foi realizado o 1º de maio anti-ditadura. O CRUSP foi o palco de organização de boa parte da manifestação que, em função do possível enfrentamento com as forças de repressão tinha características de ações de guerrilha. O famoso megafone vermelho utilizado no ato, foi pintado no Bloco A do CRUSP, na madrugada muito fria daquele 1º de maio. Contados hoje, estes acontecimentos podem parecer, como frisado anteriormente, apenas uma “porra loquice” do movimento estudantil.
O intenso debate político e o engajamento crescente dos estudantes na luta contra repressão levaram a radicalização da luta e como conseqüência à expansão das organizações de esquerda que, com intensificação da repressão, foram indo para a clandestinidade. Mais uma vez o CRUSP tornou-se o local de escolha para as reuniões das diferentes organizações como a APML, ALN, POLOP, 4ª INTERNACIONAL, PC do B e outras que tinham influência no movimento estudantil. E também do enfrentamento político das diversas correntes. O movimento estudantil no enfretamento com a repressão foi tomando características de guerrilha urbana.
Diante da impossibilidade da expressão política, da censura dos meios de comunicação, da inexistência de vida partidária, da perseguição e prisão de lideranças, do cerceamento das atividades associativas, enfim, do estabelecimento no País de uma ditadura escancarada, essas reações do movimento estudantil eram esperadas. Lembremos que as diferentes organizações políticas já estavam decididas pela luta armada. O CRUSP foi palco e testemunha do desapego de inúmeros jovens, carregados de grandes valores que arriscaram ou mesmo deram sua vida em defesa de uma sociedade mais justa. Pagou-se um preço muito alto pela coragem e determinação de lutar pelo que se acreditava. A sociedade brasileira, mesmo discordando dos métodos, apoiou essa luta que se desdobrou na luta armada e no recrudescimento da repressão.
O intenso envolvimento na luta política, teve também seu lado humano trazendo uma convivência fraterna e solidária que foi despertada pelo engajamento político, ainda que muitas vezes marcada por intensa disputa. A construção da noção do coletivo, a importância da luta por idéias e a necessidade da construção coletiva de propostas, foram o germe do processo posterior de democratização e certamente faz parte da “herança” de todos os cruspianos. Os anos de chumbo que vivemos foram superados gradualmente pela continuidade da luta em termos mais silenciosos, muitas vezes clandestinos até encontrar espaços públicos de organização, que culminaram em fins dos anos setenta pelo surgimento do glorioso movimento operário no ABC paulista, liderado pelo Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo e Diadema e, em torno qual organizaram-se as diferentes forças que vieram a derrubar a ditadura militar.
Muitos cruspianos participaram dessa retomada das liberdades civis e democráticas que hoje desfrutamos. Nos orgulhamos muito de termos sido cruspianos e, temos a certeza, de que todos nós cruspianos demos nossa contribuição para a construção da sociedade que vivemos hoje, que, embora ainda injusta, há espaço e liberdade para avançar na luta.
Carlos Eduardo Baldijao é professor aposentado da USP. Foi Presidente do DCE-Livre da USP em 1967. Márcia Furquim de Almeida é professora da USP.