Uma república estudantil chamada Paróquia

Álvaro Rodrigues dos Santos (Arvão), Gilberto Meneguesso (Giba)

Paróquia: origens e moradores

Ao final da década de 1950 e um bom pedaço das décadas de 1960 e 70 eram comuns em São Paulo pensões e repúblicas que abrigavam estudantes mais pobres vindos do interior e mesmo de bairros distantes da capital paulista. Com o tempo as repúblicas assumiram papel de destaque nessa função, pois que possibilitavam uma considerável redução de despesas, item essencial na vida financeiramente apertada de tantos estudantes.

Essas repúblicas normalmente ocupavam casarões antigos, próximos aos locais de estudo e do trabalho dos moradores. A Paróquia foi uma dessas muitas repúblicas que existiram nos bairros contíguos à Av. Angélica, à Rua Jaguaribe, à Rua das Palmeiras, Dª Viridiana, Maria Antônia e outras vias que ficavam próximas a escolas universitárias e ao Centro, onde comumente muitos trabalhavam. E se divertiam.

A história da Paróquia é intimamente ligada à história do Cursinho do Grêmio (grêmio da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, com sede à legendária Rua Maria Antônia).

O Cursinho do Grêmio, com sede principal à rua Martinico Prado, 377, e conduzido sempre por gente abnegada e idealista, foi a salvação de estudantes mais pobres que desejavam entrar em cursos da FFCL. Note-se que a essa época já se delineava o empresariamento de cursinhos pré-vestibular, os quais se revelavam dia a dia como bons e promissores negócios. O Cursinho do Grêmio sempre manteve seu caráter altruísta, o que possibilitou que centenas de jovens de famílias mais pobres o cursassem. Boa parte dos estudantes da FFCL da década de 1960 saiu dos bancos do Cursinho do Grêmio.

Bem, com a expansão de suas atividades o CG abriu inicialmente uma sub-sede na rua General Jardim, que logo se mostrou pequena, sendo então substituída em 1963 por um casarão na Rua Albuquerque Lins, 1.145. Era um sobrado grande com varias salas que atendiam bem às necessidades do cursinho. Havia um “porão” enorme, com dois pequenos quartos nos fundos e um outro, também pequeno, na frente. Entre os dois, uma sala de bom tamanho onde ficava uma mesa grande.

Jocimar Archangelo, então diretor do CG (mais tarde diretor proprietário do Equipe), sempre pronto a ajudar a quem precisasse, concordou em ceder o porão do casarão para o abrigo dos calouros (1963) de Geologia Gilberto Meneguesso, que trabalhava no cursinho, e Oneile Fratin, que morava nos fundos da antiga sub-sede da General Jardim.

Gilberto havia conseguido um salvador emprego no cursinho com a prestimosa ajuda de seu amigo Basílio Baseia (com o qual morava em uma pensão). Logo Basílio também foi para a Paróquia, e foram assim os três, Gilberto, Fratin e Basílio seus primeiros moradores. Gilberto, apelido Giba, de Barretos, cursando Geologia, Fratin, apelido Cachorro Louco, de São Joaquim da Barra, Geologia, e Basílio, de Neves Paulista, Física. Gilberto e Fratin ocuparam o quarto do meio e ganharam beliches que estavam disponíveis no DCE e foram cedidos pelo Éder Sader, irmão do Emir Sader, ambos professores de filosofia no cursinho.

Logo a seguir vieram o Spero Morato (Física, São Paulo), o Olímpio Giroldo (Véio Olimpio, Presidente Prudente), Roberto Monforte (Gordo Monforte, Quatá), Álvaro Rodrigues dos Santos (Arvão, Batatais), Ghandi Pires Fraga (Baiano, Ilhéus-BA), todos cursando Geologia, Geraldo Paulin (Prefeito, Boracéia, Medicina), Pedro Luquiare (Botucatu, Física), Sadao Sawakuchi (Barretos, Química), Yukitaka Nakamura (São Bernardo, Física), José Maria (Presidente Prudente, Matemática), Roberto Ferraz de Almeida Prado (Gente Fina, Jaú, Matemática), Isac .......... (Física) e Norberto Baracuy (Baraca, João Pessoa PB, Geologia).

Haviam também os visitantes assíduos, que no fundo desejavam mesmo é se integrar com a turma da Paróquia. Destacaram-se alguns, o Luís Augusto Milani (Guto Campineiro, de Campinas), o Carlos Gonçalves Leite (Carlinhos, do Tatuapé, São Paulo), o Percival Ventura (Perci), o Chinfrim (Ribeirão Preto). Sempre foram muito bem recebidos, verdadeiros irmãos.

O nome Paróquia para essa república foi inspirado em uma expressão (tipo assim: esse é o cara mais legal da paróquia) muito usada pelo colega Spero. Pegou e ficou.

Como já referido, o fator comum a todos os moradores era a enorme “dureza”. Difícil achar um tostão nos bolsos. A maior parte trabalhava ou fazia bicos para ajudar nas despesas. Essa condição estabeleceu um enorme espírito de identidade e cooperação entre todos, especialmente no que toca ao atendimento de necessidades mais emergenciais e na faina de conseguir cobrir as despesas naturais da república, o que incluía as refeições.

Nos fundos da casa havia uma garagem onde depois de um certo tempo passou a funcionar uma gráfica do cursinho. Antes era tudo na base do Stencil e do mimeógrafo a álcool. Apenas para lembrar , o chefe da gráfica era, nada mais nada menos, que o gentilíssimo e amigo Sr. Rafael Giglioti, irmão do famoso radialista Fiori Giglioti.

A cozinha da casa, no térreo, era usada pelos paroquianos, para o que, com muito esforço, pagavam uma cozinheira. Todas despesas eram rigorosamente anotadas e divididas. Existia uma folha com o nome de todos, onde diariamente cada um anotava as refeições que fazia. No final do mês somava-se os números de refeições, dividia-se o total de gastos pelo total de refeições e tinha-se o custo por refeição e cada um pagava pelo seu consumo.

O dia a dia da Paróquia

Não seria de se estranhar que na reunião dessa turma de jovens, no auge de suas irresponsabilidades, imperava um ambiente de muita alegria, com as mais variadas e costumeiras peças pregadas em colegas moradores e em visitantes. Só era proibido atrapalhar alguém estudando, o restante do tempo comportava tudo. As maiores vítimas entre os moradores, por suas reações extremas, foram o Prefeito e o Gordo Monforte. Claro, vários casos pitorescos teriam certamente de acontecer. Até algumas maldades, como veremos.

As cantorias de músicas caipiras (essa frescura de “sertanejo” ainda não existia na época) eram muito comuns, pois que quase todos eram provenientes de cidades do interior. Mas havia uma música que, pode-se dizer, transformou-se no hino da Paróquia, Cabocla Tereza, sempre puxada pelo Véio Olímpio.

E havia artistas também. O Gordo Monforte se destacava. Seria mesmo um grande artista caso tivesse seguido essa carreira. Brincalhão e piadista, esmerou-se em compor textos engraçadíssimos que irradiava como exímio locutor de rádio. O jogo entre a África e a Grécia era dos mais solicitados por seus incansáveis admiradores. Gordo Monforte era mesmo gordo e forte, e inocentemente tinha a mania de fazer brincadeiras que para os demais soavam como brutas e estúpidas: sentar na cabeça de quem estivesse dormindo, destroncar o pescoço de um infeliz, essas coisas o marcavam. Não é por menos que era uma das vítimas preferidas das peças que outros armavam.

Em um sábado houve uma agitação geral na Paróquia, iríamos assistir algum filme no Cine Olido, na Av. São João. Mil preparações, atrasos e saímos todos em direção à Av. Angélica para pegar um bonde ou um ônibus. Já lá perto o Gordo lembrou-se que não era permitida a entrada no Olido sem paletó. E fez todo mundo voltar para a república para vestir o bendito paletó. Com muito custo chegamos ao Olido, compramos as entradas e fomos entrando. De repente, um agito no bilheteiro. O Gordo estava com calça rancheira, e não se permitia a entrada com essa indumentária. Risadas gerais. Resultado, quase como desforra pela história dos paletós, entramos todos e deixamos o Gordo lá fora, com uma cara de vítima incrédula. Ficou sem conversar com todos por uma semana.

O Geraldo Paulin, mais conhecido como Prefeito, trabalhava no Banespa e muitas vezes chegava já à noite, bem tarde e com fome, sempre interessado em saber se havia alguma coisa para comer. Gostava muito de fazer um sanduíche. Certo dia preparamos um sanduíche que continha queijo mozarela, alface e mortadela, dentro do qual enfiamos uma camisinha de Vênus. Logo quando ele chegou faminto oferecemos a iguaria. Ficamos prontos para correr e não deu outra, quando ele mordeu a camisinha e a tentou esticar pensando que era queijo, recebeu aquela estilingada na boca, dando-se então conta de que se tratava de uma maldosa peça dos colegas. Alucinado, saiu atrás da turma com cinta na mão, e todos fugiram para a rua, só voltando, aos poucos, quando ele já estava mais calmo.

O cursinho também preparava para medicina. Tinha aula pratica onde dissecavam pombos para estudo e o Prefeito pediu para que os pombos não fossem jogados fora, pois ele queria fazer cozido. Assim foi feito e, numa certa noite daquelas que ele chegava com fome e, quando ja estava cozinhando, alguém numa distraída dele, colocou açúcar na panela. Quando foi comer e sentiu o gosto do melaço, já foi gritando - quem foi o desgraçado, e pegou um violão que estava mais próximo e quebrou no lombo de um inocente. Quem fez a arte já não estava mais lá. O violão era do José Maria e foi o próprio que foi atingido. O Prefeito ficou só com o cabo na mão.

Fazer a feira era uma aventura que exigia muita coragem e treino. Existia uma feira no alto da ladeira da Albuquerque Lins. Normalmente iam lá Giba, Arvão e Gordo Monforte, já com o plano estruturado. A técnica, elaborada pelo Arvão, era apurada e, obviamente, tinha como objetivo trazer o máximo de produtos alimentícios sem o devido pagamento. As diversas bancas dispunham seus produtos sobre uma espécie de mesa armada com tábuas e cavaletes. Chegávamos, um de nós ficava agachado com a sacola aberta sobre o chão, e como clientes interessados começávamos a examinar e pedir informações sobre os produtos. Malandramente pedíamos informações sobre algo que estava distante. Na primeira distração do dono, laranjas, abóboras, chuchus, berinjelas, mandiocas, e tantas outras coisas eram derrubadas da mesa sobre a sacola aberta no chão. Para disfarçar, alguma pouca coisa era comprada. Quando chegávamos na Paróquia, orgulhosamente e muito alegremente separávamos o que era comprado do que era de graça, para não dizer roubado. Éramos eficientes, pois o montante do roubo era sempre maior. Tudo isso era para nós mais uma diversão do que uma maldade. Coisas da idade. E da penúria.

Outro caso, a comemoração do aniversário de um dos paroquianos provocou uma algazarra tão grande até altas horas da madrugada, que o barulho foi ouvido longe. Nossos vizinhos do lado era um casal idoso, talvez russos, que mal falavam o português. No dia seguinte procuraram saber quem era o responsável pelo cursinho sendo informados que era o Jocimar Archangelo, que poderia ser encontrado no prédio da Martinico Prado. Jocimar recebeu o vizinho que fez uma longa e raivosa reclamação. Mal sabia o velhinho que o próprio Jocimar estava lá participando da farra. Foi bem atendido, mas jamais ficou sabendo da verdade.

Um dia, o Pedro Luquiare, escondeu uma campainha ligada numa tomada (essas da porta de entrada de casas) embaixo do colchão da cama do Giba. Sempre que ele se movimentava ela tocava mesmo que um tanto abafada. Varias vezes a vítima se levantou pensando ser alguém na porta de entrada. Depois de muito tempo, com todos que sabiam da brincadeira se divertindo muito, passaram a tirar o maior sarro do Giba. Mas o Pedro não ficou sem troco. Ele dava aula de física na Martinico Prado e um certo dia antes dele sair apressado para dar aula, o Giba trocou todo material que estava em sua pasta, essencial para sua aula, por outro material que nada tinha a ver com física. E assim íamos nós de forras e desforras...

Um último causo, mas esse evolveu mesmo muita maldade. No primeiro quarto, o da frente, moravam o Arvão (cama do meio), o Véio Olímpio (cama da direita), o Gordo Monforte (cama da esquerda) e o Prefeito (enfiado em um cubículo agregado que chamávamos Geladeira). O Gordo tinha o cacoete de ranger fortemente os dentes enquanto dormia. O som era alto, a ponto de atrapalhar o sono de seus colegas. Várias vezes o acordávamos para amenizar o problema, mas sem sucesso. Uma noite as vítimas combinaram uma ação macabra. Arranjaram um pouco de areia de construção e esperaram o Gordo dormir. Quando ele começou a ranger os dentes, que ficavam à mostra, os colegas malvados foram jogando areia em sua boca. Não demorou aquilo começou a funcionar como uma verdadeira grosa comendo os dentes do Gordo. Claro, em um momento ele acordou todo assustado, mas demorou muito para entender o que havia acontecido. O suficiente para os aprontadores se escafederem.

Muitos outros casos aconteceram na vida dos paroquianos, e por mais estridentes que tenham sido sempre salvava-se totalmente ilesa a grande amizade que uniu a todos durante todo o tempo de existência da república.

Últimos tempos

O cursinho do Grêmio vinha numa escalada crescente e em um certo dia precisou usar o porão em que estava a Paróquia. O Giba, sempre à frente dessas situações, acabou encontrando uma casa nas proximidades, logo ali perto na rua Veiga Filho. Era uma casa antiga e de bom tamanho para comportar os paroquianos. Não era sobrado, mas também tinha um tipo “porão” que posteriormente foi utilizado pelo cursinho, pois para os paroquianos não tinha grande serventia.

Giba alugou essa casa em seu nome direto com o proprietário, um tal de Dr João. Nunca houve atraso no aluguel, recebia as partes de cada um e levava ao seu escritório no centro próximo à rua Direita. Dr. João era um homem bom, parecia entender as necessidades de estudantes.

Finalmente, os paroquianos foram se formando e cada um tomando seu rumo e, como também foi preciso entregar a casa. Felizmente, alguém ligado ao Grêmio da Faculdade manifestou interesse em ficar com a casa. Giba levou a pessoa ao Dr. João apresentando-o como candidato a locatário e ele aceitou. Alguns poucos paroquianos ainda ficaram um tempinho por lá, até o segundo semestre de 1967.

E ASSIM TERMINOU A HISTÓRIA DE NOSSA SAUDOSA PARÓQUIA. JAMAIS ESQUECEREMOS ESSES BONS TEMPOS.