Leila Tavares Lapyda -- nov/2020
... Do bloco D, 120 passos me separavam do (e me uniam ao) Centro de Vivência. Era muito e era pouco. Muito se fosse para encontrar os amigos, pouco se logo estaria exposta à amplidão daquele salão, aos olhares de colegas de moradia ou mesmo de desconhecidos passantes pelo Crusp. Excitada, desejosa, medrosa, percorria o corredor até lá. O teto baixo do corredor me acolhia; os olhos preventivamente baixos não bastavam para me furtar de cruzar olhares desconhecidos. Quando apontava alguém, já me entretinha com os desenhos das rachaduras do piso e com os movimentos das sombras nos pilares do corredor. Só o corredor vazio me tranquilizava. Não completamente. Passar pela portaria de outros prédios me sobressaltava. Alguém sempre podia estar saindo... Olharia? Falaria “oi”? Seguiria passo-a- passo, lado-a-lado?
Meu coração ficava permanentemente em sobressalto. Cruzar a porta do Centro de Vivência era ficar com a respiração descompassada. A fila para o restaurante podia me oferecer guarida. Já me postava num enquadre bem definido: não precisava olhar para os lados e a rotina de seguir a fila me acalmava. Pior era cruzar o salão sem fila, exposta aos olhares de uns e outros passantes, duplas conversando, gente sentada nos bancos laterais do salão junto às janelas – gente que ficava ali só olhando, outros lendo e outros jogando botão, damas, xadrez, palito, pingue-pongue... ou apenas batendo papo. E, mais, entrando no restaurante, bandeja mais para lá ou mais para cá sobre o apoio em que deslizavam; tudo que me servissem, aceitaria, nada de “isso não”, frio na barriga. Aquele monte de mesas à minha frente: qual delas? Para que lado vou? Onde está mais vazio? Vou sentar sozinha? Tem algum conhecido? Arrisco ficar perto? Não, vou sentar longe, mas aí pode vir mais gente e sentar à minha mesa, então é melhor já sentar perto de quem está por aqui. Alguém que já sei ser daqui.
Tomara que chegue alguém do meu prédio, do meu andar, do meu curso. Não ficarei tão envergonhada com os talheres, não posso fazer barulho. Tenho que mastigar de boca fechada, beber sem ruído, olhar só para minha bandeja, pedir licença ao sair da mesa. Minha voz sairia? Só me era confortável andar acompanhada. Tinha colegas de curso, companheiras de quarto, mas ainda não possuía amigas – o apoio necessário ao desamparo de existir no desconhecido. À noite, estando só, tinha medo de passar pelos corredores. No corredor entre os prédios, sempre havia um ou outro morador. No prédio em que eu morava, o corredor do meu andar sempre estava vazio e, ao percorrê-lo, principalmente nas noites de vento sibilante, agitando o 1revestimento das paredes do prédio, era tomada por uma espécie de pânico na iminência de ser tragada por fantasmas... Disparava numa corrida e acertar a fechadura da porta era uma operação de vida ou morte que não tinha fim. Entrava com o dedo no interruptor. Luz. Todas as luzes. Adormecer com a luz de cabeceira acesa, tendo como álibi adormecer lendo um livro. Minhas companheiras de quarto não poderiam saber dos meus medos, assim como não podiam me amparar. Tinha, frequentemente, a sensação de estar semiadormecida. Não comandava meus movimentos, paralisada. Isso me apavorava. Às vezes tinha a sensação de sair do meu corpo pairando no ar. Terrivelmente aflitivo querer voltar e não conseguir... Que mistério era aquele?
Assim cheguei ao Crusp. Só e assustada. Mais: rezando. Rezava para o anjo da guarda de todas nós, meninas. À noite, quando voltava para o prédio, via casais namorando. Eles ficavam junto às colunas dos prédios, na escuridão, colados. A penumbra espessa não permitia qualquer identificação. Ficava apreensiva. Era um alívio não reconhecer ninguém porque, caso contrário, eu ficaria cúmplice. Considerava esses pares vulneráveis, desprotegidos. Ninguém respondia por eles, senão aquela liberdade sem limites, embriagante. Era perigoso. Eu subia para o meu apartamento e rezava. Um apelo ao anjo das meninas. Vim para São Paulo com a permissão do meu pai porque aqui “estaria segura morando num alojamento junto à minha escola (!)”. Essa era a segurança? Era portadora, ao ingressar na comunidade Cruspiana, de timidez crônica, medo do escuro, medo de fantasmas, apelos aos anjos, valores morais puritanos, ingenuidade mortífera, porém, surpreendentemente, plena de coragem, bem plena. Era ali que eu queria estar, mesmo que o coração tivesse que ritmar a arritmia de todo dia: o corredor, o café da manhã, o almoço, o jantar, o Circular – (sim, o Circular, nosso ônibus, que nos distribuía pelas escolas e cujas viagens eram muito curtas ou muito longas, dependendo de quem estivesse conosco) – e nosso Centro de Vivência, que era nosso ímã de convivência.
À noite, a maioria dos moradores se recolhia aos seus prédios. O corredor entre os prédios tinha seu horário de rush, chegada das escolas, trânsito para o jantar, alunos dos cursos noturnos, gente regressando do restaurante. Depois, baixava uma calmaria quase triste. No Centro de Vivência, ficavam os que gostavam de gente, que não suportariam a rotina escola-quarto-escola. Ficavam conversando, jogando, tocando piano – sim, um piano disponível no Centro de Vivência! Nos primeiros tempos, eu me recolhia ao prédio morrendo de vontade de ficar lá embaixo; mas, com quem? Só poderia com companhia. Jamais me proporia a entrar num jogo ou me colocar ao lado de quem tocasse o piano, num canto do salão, um canto no qual se instalou um palco. O palco mais marcante da minha vida. Quem sabe, da vida de todos aqueles que ousaram subir nele ou prestar-lhe sentido com sua atenção de público atento e participante.
Então, tendo gente como paixão, no Crusp persisti e vinguei. Crusp, um berçário, uma explosão de vida. Biquei a casca do ovo e lá aprendi a voar. Paciente e com vocação para ouvir, fui me tornando confidente e fazendo amigos. Ter amigos me salvou. Amigos e oxigênio se equivaliam. Devo, em particular, a uma amiga ser magnetizada para todas as rodas de pessoas, principalmente dos rapazes, nas noites Cruspianas, nos ócios de fins de semana, nas festas, bailes, Show do Crusp, eventos, assembleias... No agito dos “Encontros das Casas”, meu trânsito social no Crusp não barrou minha tendência à introspecção. Não me interessei por esses encontros nem pelas “chacrinhas” que aconteciam com a animação do pessoal boêmio, festeiro que se reunia até altas horas da noite.
O lazer pelo puro deleite me era desconhecido. A frustração com o curso que escolhi me enlouquecia – não tinha nenhuma energia para o estudo. Vivia atolada em culpa e solidão quanto ao que fazer. Escrevia cartas a mim mesma, tentando me amparar. Eu ouvia bastante as pessoas, mas não sabia falar de mim. Recorri ao Serviço de Psicologia do ISSU (Instituto de Serviço Social da Universidade) ou ao COSEAS (Coordenadoria de Saúde e Assistência Social) – o atendimento não me socorreu. Depois de uma bateria de testes, o psicólogo me despediu sem propor um trabalho comigo e com a conclusão: “Você está sofrendo de apatia”. Sim, até logo. Humm, meu sofrimento, pelo menos um deles, tinha nome: Apatia. Só podia dizer em voz bem baixinha e a mim mesma que queria ir para o curso de Filosofia. Era só intuição, porque ainda habitava o “Éden” da mais absoluta alienação. Não poderia dizer ao meu pai: vou começar tudo de novo... A despesa que teve até então comigo me calou. Abafando esse conflito, só me restava a resignação e os amigos. Além do mais, eu vivia silenciosamente o trauma pelo falecimento recente de minha mãe.
Numa noite memorável, bem tarde, vem do Centro de Vivência minha amiga, a que me magnetizara para o social, e diz muito excitada, que estava numa conversa em que falavam muito de um tal de Marx... O galo cantara. Muitas noites comparando as propostas do tal de Marx com as de Jesus Cristo. Marxismo e Cristianismo conviviam bem no nosso universo. Tudo fazia sentido. Nossa miscelânea era espetacular. Marx era um porta-voz moderno da Doutrina Cristã. Eu não precisava arrumar outro conflito. Meu dia já era um trânsito por conflitos do amanhecer ao anoitecer. Já basta! Justiça social pode ser resolvida com a Caridade, o Amor ao próximo. E, falando em amor, e o amor aos rapazes? Eu era a imagem do desalento, com nenhum deles encontrava o brilho de cumplicidade no olhar... Vivia num deserto. Onde se dará essa aparição? Como? Quando?
Depois de um baile, fui pedida em namoro. Choque! Era a primeira vez que eu via aquele moço! Ele me dizia que há meses flertava comigo! Eu não sabia! Cada um com a sua criação. Parafuso. Sem ar, pedi tempo. As amigas me proibiram a recusa. Medo e perplexidade! O primeiro beijo foi roubado. À noite, na Praça da República: “Tem um cisco no seu olho, vou tirar, olha para cima”. Olhei e, beijo na boca! Motivo para sermão: “Você pensa que sou dessas meninas fáceis?”. Estávamos há três dias namorando, com vinte anos, e nem pegávamos na mão. O beijo assim, mesmo tão rápido, lúdico, foi uma ousadia castigada com um retrocesso: não pegaria na mão dele por mais um tempo...
Porém, no Crusp, cumpríamos a pena da “condenação à liberdade”. O que mais ansiava, sem me dar conta, era pela expulsão do “Paraíso”. Onde estava a maçã? Buscava uma encarnação. A fecundação acontecia no espírito e no corpo. O primeiro turbilhão coletivo se deu com o boicote ao restaurante do Crusp. Nas assembleias, a recusa ao aumento de preço das refeições resultou na montagem de um “restaurante alternativo”. Aprendi que o protesto existia, que o boicote ao restaurante era uma alternativa e que as autoridades, mais cedo ou mais tarde, reagiriam com violência. O Crusp começou a mostrar suas feições... Nosso poder paralelo foi golpeado com uma noite de invasão do Crusp pela Polícia Militar, que viera desmantelar nossa “perigosa” cozinha. Nesta fiz plantão várias vezes. Nossa recompensa pela solidariedade com a greve era, no final do turno de trabalho, saborear um delicioso iogurte, cujo gosto nunca esqueci.
Naquele momento, minha adesão se deu por engajamento ao protesto que considerava justo. Não pude fazer nenhuma conexão com a conjuntura mais ampla de Universidade, Sociedade, Capitalismo, Socialismo, Revolução. Da mesma forma, como tarefeira anônima, participei dos protestos à invasão da polícia. Fora, para mim, uma surpresa enorme aqueles soldados chegando à noite; camburões, brucutus, fuzis, metralhadoras. Me senti num campo de batalha – e realmente se travou um enfrentamento: as moças gritavam tanto slogans articulados politicamente como xingamentos aos soldados. Valia tudo desde que a “autoridade” exercida com violência fosse achacada. Ninguém dormiu naquela noite. Percebia que os rapazes reagiam porque um brucutu intimidador se postou no gramado entre o meu prédio (Bloco D) e o dos rapazes (Bloco B). Brucutu que acabou atolado no gramado pela água das mangueiras de incêndio manejadas a partir do D. Desmoralização da repressão. Gozo. Astúcia. Ouvi dizer que os rapazes se postaram no D para estrategicamente “aguar” um pouco mais o brucutu.
A excitação era total. As meninas se alternavam, no final do corredor, olhando pela porta entreaberta da escada de incêndio, uma escada ao ar livre, a céu aberto. Dalí podíamos ver a rua por onde transitavam soldados e o aparato militar. Essa rua dava acesso ao restaurante, mas não víamos o que se passava por lá. Nossa visão era barrada por outro prédio. Os policiais estavam desmontando nossa cozinha. O clima daquele alvoroço me assustava e me seduzia para aquela “farra” de desacato à autoridade. Minha adesão era a um desacato sério, contra a violência da operação. A mim, tão pudica, me chocava uma menina sentada no patamar da escada de incêndio. Pernas balançando soltas no vão, provocativa com “seus filhos de uma puta! ladrões, vão roubar o fogão da mãe de vocês!”.
Era baixaria, desrecalque, pensava eu. Afinal, nossa causa é manter o preço das refeições acessível aos estudantes que dependem do restaurante universitário. Sim e não, no bojo da ingenuidade. No raiar do dia, nosso prédio foi invadido pelos soldados – correria, todo mundo se trancando nos apartamentos. Foi uma operação inesperada para nós. Íamos apanhar, soldados de cassetetes em punho. Terror. A porta de entrada do nosso apartamento foi arrombada. Estávamos as três debaixo das cobertas, edredons grossos para amortecer os golpes. Antevi a cena de arrombamento da porta do quarto – ali estava uma grávida de oito meses! Os soldados entrariam dando cacetadas. Ela não poderia apanhar. Pulei da cama e gritei para os soldados: “Vou abrir a porta, mas aqui tem uma grávida de oito meses. Vocês não podem tocar nela”. Abri e voei para minha cama. Três soldados incrédulos. Entraram no quarto, nos examinaram deitadas debaixo das cobertas, não disseram nada. Levaram um pito da grávida, que, do pedestal daquela barriga, se achou no dever de lhes passar um sermão pela invasão do apartamento. Gelei, incrédula com a ousadia dela. Não tínhamos saída. Apanharíamos. Mas se afastaram sem usar os cassetetes! Atônita, ainda acompanhei a saída dos soldados. Passaram pela sala desabafando a frustração do desacato, da contenção dos cassetetes e puseram abaixo tudo que estava nas nossas prateleiras – nossos livros, cadernos, pertences, chutando as mesas e as cadeiras. Baderna! Vandalismo!
No apartamento imediatamente vizinho, pancadaria. As meninas apanharam. Uma médica, mãe de uma moradora, estava lá e levou cacetadas também. Não tive condições de ir para a escola fazer prova de Genética. Ao tentar, a duras penas, uma justificativa junto ao responsável pela disciplina, fui humilhada. Aos gritos: “Você faz parte daquela cambada comunista e desregrada do Crusp?! Vão ficar com zero”. As Cruspianas foram para exame oral. Naquela noite, não me lembro se alguém foi preso e como a repressão se deu com os rapazes. Recordo-me do dia raiando, céu róseo iluminando um colega politécnico no alto de um tambor. Discursava inflamado contra a ditadura, contra o ISSU, contra a Reitoria, contra... Eu não juntava lé com cré. Mas era uma aurora. Alguém me dizia que havia um tecido. Os fatos não eram isolados. Eu queria muito estudar esse tecido. Como um aumento no preço das refeições, uma reivindicação específica, podia ser trabalhada para ser o engate de uma cadeia de questionamentos?
Mas, para esse estudo, dependia da mesada do meu pai, contadinha por ele tostão por tostão e contada por mim culpa por culpa. Estava fadada a terminar o meu curso de Biologia. Era como se começar de novo arruinasse meu pai. Quanta pena: eu ali, numa universidade pública, a melhor do país, num curso de período integral, sofisticado, custosíssimo, ocupando uma vaga preciosa – e desmotivada, infeliz, sem condições de acertar os ponteiros... Prisioneira dos meus fantasmas. Acovardada. Desesperada. Alienada. Mas residente do Crusp. Ali, engendrei renascimento na barriga da Amizade, do Amor, e da Politização. Não soube o que sobrou da nossa cozinha, do preço do restaurante, dos resultados “objetivos” daquele confronto. O Crusp foi se tornando uma Festa. Minha festa de todo dia. Tímida, mas menos medrosa, fui me enturmando. Com quem? Com a turma da “Sensibilidade Social”. Com os estudantes que queriam compreender o mundo muito além do que nossas famílias e escolas nos contaram e continuavam contando.
Na universidade, nossos cursos eram específicos. “Bitolados”, no nosso dizer, alienados das necessidades da sociedade brasileira. Só os cursos de Humanas tinham espaço para questionar a Realidade Brasileira e Mundial. Os cursos das Áreas ditas das Ciências e Tecnologia não possuíam em seus currículos nenhuma brecha para pensar o mundo no qual a Universidade estava inserida. Não havia sequer uma disciplina de História da Ciência, com a qual se poderia fazer uma ponte entre Construção do Conhecimento e História da Sociedade Humana. Nada. Por conta do planejamento curricular, seguiríamos como cardumes. O roteiro estabelecido visava ao diploma e salve-se quem puder no mercado de trabalho. Então, buscávamos por nós mesmos.
Quando li “História da Riqueza do Homem”, de Leo Huberman, vertigem, exaltação, construção de sentido. A Terra no céu, o céu na Terra. Aleluia. O mundo feito por Deus não era mais como todo o sempre! Podíamos e devíamos fazer a nossa parte! A minha parte não era só terminar meu curso. Era infinitamente mais. Carregar a cruz do curso de Biologia tornou-se menos sofrido. Passei a ser nutrida pela vida universitária, cujo celeiro era o Crusp: sua vida de convivência com a diversidade, sua ebulição cultural, sua organização estudantil tentando participar das questões da universidade e das questões mais abrangentes da nação e do mundo. A chama dessa efervescência Cruspiana, tentando compreender o mundo e mudá-lo para melhor, possuía uma correspondência em mim.
Tive uma formação familiar com uma mãe cheia de compaixão pelo próximo. Com ela, aprendi essa prática solidária e solitária de tentar transformar o irremediável. Precisei casar o pensamento marxista com minha formação cristã. Dei um jeito de dar as mãos a ambos, mesmo porque não tinha formação teórica suficiente para avaliar as contradições. Mais tarde resolveria com quem permanecer de mãos 6dadas. Fiquei transformada para sempre ao me politizar. À medida que minha socialização no Crusp progredia, meu engajamento na vida universitária aumentava e, “milagrosamente”, da falta de ar, das palpitações, passei a várias conquistas: ser representante do meu prédio, Bloco D, em duas gestões consecutivas. Cada prédio possuía um representante eleito para participar das reuniões da diretoria do ISSU.
Fui eleita representante dos alunos da minha faculdade, Instituto de Biociências, para a Comissão Paritária da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP. Em 1968, essa comissão foi formada com representantes dos professores, dos alunos e dos funcionários de cada faculdade, com o objetivo de elaborar um projeto de Reforma Universitária para a USP. Era um empreendimento de enorme importância naquele momento, em que estávamos ameaçados pelo acordo MEC-USAID, apadrinhado pelos ideólogos da Ditadura brasileira. Era a voz estudantil participando. Meu dever de ser porta-voz das reinvindicações dos estudantes, pela responsabilidade que isso implicava, tinha produzido o “milagre” da minha transformação. Minha participação acontecia de acordo com a prescrição marxista: consciência que se desenvolve a partir de uma práxis. Conversas com os colegas politizados, muita conversa. Até altas horas da noite, madrugada adentro. Muitas discussões, muitas descobertas, leituras. De início, resistência às gozações que os colegas me faziam: “Você serve para trabalhar no Exército da Salvação” (porque eu, com formação cristã, achava que, conscientizando os latifundiários e os capitalistas, eles colocariam em prática a reforma agrária ou socializariam os meios de produção com o proletariado! não havia gente intrinsecamente má, exploradora, havia gente ignorante, como eu até há pouquíssimo tempo. A salvação estava na consciência, acreditava que todos éramos eticamente confiáveis).
Passei a participar das atividades culturais promovidas pela liderança Cruspiana. Criação da AURK (Associação Universitária Rafael Kauan), entidade representativa dos moradores do Crusp. Programação de seminários sobre Marxismo e pensamento dialético. Colaboradora do departamento cultural da AURK. Encarregada da feira de livros na minha faculdade. Responsável pelo jornal mural da Banca da Cultura, uma feira permanente de livros no Centro de Vivência. Frequentadora assídua das Assembleias estudantis. No meu prédio, convocava reuniões para discutirmos os objetivos de greves estudantis, de passeatas e protestos contra medidas elitizantes para a Universidade, de protestos contra o acordo MEC-USAID, de protestos contra decretos da Ditadura, de passeatas de adesão às categorias de trabalhadores em greve, de adesão a movimentos mundiais (como protestar contra a Guerra do Vietnã), aderir a movimentos a favor da Paz e da Democracia.
Enquanto membro da Comissão Paritária, eu discutia a Reforma Universitária no Crusp, na minha faculdade e na Comissão Paritária Central. Na minha faculdade, representei os alunos no planejamento e execução de um Curso Piloto realizado com a duração de uma semana nas férias de julho. O objetivo do curso foi atender as reinvindicações dos alunos de conectar nosso curso de Biociências às demandas sociais. Esse curso se realizou com a parceria de professores de boa vontade e de interesse didático, mais que propriamente por serem politizados. O Crusp foi gestando uma comunidade cultural animada por inúmeras atividades, como a Banca da Cultura, o Show do Crusp, o Teatro Cruspiano, exibições e debates de filmes, palestras e discussões a respeito de padrões morais, colocando em pauta a revolução de costumes, o amor livre, as questões feministas (Simone de Beauvoir e Carmen da Silva).
A reinvindicação de autogestão por parte da vanguarda politizada não demorou a entrar na pauta. A partir do terceiro ano de residência, passei a lecionar Ciências físicas e biológicas na rede estadual. Ficava manhã e tarde na Biologia e à noite no colégio. A volta à noite para o Crusp era sempre tensa. Tínhamos que atravessar um terreno baldio, por volta de 23 horas, para chegar aos alojamentos. A companhia de ônibus Vani não entrava até lá! E o ISSU não resolvia esse problema de segurança. Com as noites ocupadas, minha participação nos acontecimentos do Crusp foi diminuindo. Eu não conseguia tempo para tudo que queria abraçar.
Penso que, nos quatro anos que lá vivi, poderia considerar que o ano de 65, aos 19 anos, foi de adaptação; 66 e 67, de intenso crescimento, amadurecimento e participação na vida Cruspiana; 68 foi o ano de radicalização das posições políticas de esquerda e de direita, de endurecimento da ditadura, resultando no fechamento do Crusp. Esse ano foi intenso. O ISSU questionado radicalmente. A pressão por autogestão resultava em medidas à revelia desse órgão, como frequência de meninas nos blocos masculinos e vice-versa... Ousadia, experimentação de poder. Ano de invasão de estudantes (os Excedentes) nos prédios com vagas, sem passar pela triagem do ISSU. Ataques do Comando de Caça aos Comunistas (CCC) ao Crusp com disparos de armas de fogo – quase fui atingida por balas a esmo durante a noite. Tive que me deitar ao chão, na sala do apartamento onde eu estava corrigindo provas. A fachada dos prédios A e B ficaram com as marcas das balas. Barricadas nas portarias dos prédios residenciais para proteger os moradores de ataques e invasões do CCC. O clima era muito tenso. O Crusp, bastante movimentado. Assembleias lotadas. Passeatas contra a Ditadura. Repressão violenta da PM. Em 13/12/68, decreto do AI-5 (Ato Institucional Nº 5). Em 16/12/68, por volta das 22h, fomos avisados por um professor da universidade, que saíra de uma reunião de professores cuja cúpula apoiava a Ditadura, de que o Crusp seria invadido na madrugada de 17/12/68... e assim aconteceu.
As lideranças foram avisadas. Alvoroço.Deveriam deixar o Crusp por motivo de segurança até à meia noite, pois a Cidade Universitária começaria a ser cercada. Muito questionamento sobre quem deveria sair e quem deveria ficar. As “massas” Cruspianas não deveriam ficar abandonadas. No entanto, muitas vidas foram salvas por deixarem o Crusp naquela noite. Todos os que ficaram foram presos e fichados (no DOPS?). Alguns permaneceram presos e foram muito torturados. Os moradores foram expulsos para a rua... uma brutalidade absurda com estudantes vindos do interior, de outros estados, de outros países. Em 1969, instalou-se nas dependências do Crusp o Inquérito Policial Militar a respeito de quem seriam os responsáveis pela subversão no Crusp. Época de terror, delações sob tortura, prisões em quaisquer lugares – no trabalho, salas de aula, residências etc. A partir daí, a vanguarda de oposição à ditadura partiu para a clandestinidade e o confronto com os agentes da repressão. No final de 1969 foi concluído o referido inquérito: quarenta e seis moradores indiciados como responsáveis pela subversão no Crusp, com prisão preventiva decretada. A adolescente que buscou ser invisível em 1965 estava nessa lista.