Crônica de Carlos Alberto Lobão Cunha
Foi bom te ver outra vez/ tá fazendo um ano/ foi no carnaval que passou…
-- (Zé Kéti e Pereira Matos, 1967.)
“Companheiros!! Aqui colegas!! Companheiros!! Como dizia o poeta Maiakovski: o tempo dos oradores já passou, agora tem a palavra o camarada Mauzer! Por aqui!” Assim começava mais uma passeata. O orador empunhava e sacudia uma bandeira brasileira enquanto apoiava os pés na base de um poste de iluminação pública da Light e, aos berros, fazia a conclamação. Em pouquíssimos minutos, o Largo do Paissandu se enchia de estudantes que iam se dando os braços, se agrupando e correndo no sentido do prédio dos Correios no Anhangabaú.
Aquela passeata foi bem diferente das demais que aconteciam nas grandes capitais em todo o Brasil. Era primavera, de setembro ou outubro. Em São Bernardo do Campo, a polícia política tinha prendido todos os participantes do Congresso da União Estadual dos Estudantes de São Paulo (UEE-SP), em setembro de 1966. “Soltem nossos presos! Abaixo a ditadura!” Era o grito um tanto temeroso e com uma pitada de ódio que saía das nossas gargantas e ecoava, ainda em baixo volume, no vale do Anhangabaú. O presidente do Grêmio estava no meio do cordão que, à frente e de braços dados, puxava a passeata. Era José Roberto Arantes de Almeida (Zé Arantes) quem tinha subido naquele poste da Light e que há pouco tinha sido eleito para a presidência do Grêmio da Faculdade de Filosofia Ciências e Letras da USP. Tinha 23 anos.
Foi muito difícil colocar aquela passeata na rua. A primeira opção de saída era a Praça Ramos de Azevedo – ocupada pela Força Pública (FP), a Polícia Militar de então. A segunda era a Praça do Patriarca – também ocupada. A Praça da República, que era a terceira alternativa, também estava ocupada pela cavalaria da FP. Todos os locais previamente escolhidos estavam militarmente ocupados. Aquele acabou sendo um enorme teste para o funcionamento das Frentes de Trabalho (FTs).
Logo após a queda do congresso da UEE, o Fernando Borges de Paula Ferreira (Fernando Ruivo) se preocupou em planejar e preparar nossa ida para as ruas. Ele tinha 21 anos. Juntamente com o Jeová Assis Gomes e outros companheiros, estavam em processo de profundo debate interno no Partido Comunista Brasileiro. A falta de reação ao golpe de 64 e a manutenção da estratégia de luta pacífica defendida pelo Comitê Central do PCB eram questões fundamentais dentre as divergências. Em outros estados da federação também havia muito descontentamento com a direção do Partidão – como também era conhecido o PCB – e os estudantes começaram a se articular nas chamadas Dissidências Estudantis (DIs). Jeová também tinha 23 anos.
O Fernando Ruivo entrou em contato com conhecidos seus em cada um dos cursos da faculdade e lhes passou um ponto a ser coberto. Isto significava um local de encontro com horário pré-determinado. Pessoas que não se conheciam necessariamente se encontravam em locais públicos previamente combinados, em horários precisos e, a partir desse contato, se deslocavam entabulando conversas, ou mesmo se dirigindo para executar qualquer atividade. Quando os contatos não se conheciam, havia necessidade de senhas e contrassenhas de modo a garantir a segurança pessoal e a das próprias organizações – essencial durante a ditadura.
Conheci o Fernando Ruivo na frente do Cine Cruzeiro, no Largo Ana Rosa, Vila Mariana, no final de uma tarde de dia útil. Embora fôssemos da mesma faculdade houve necessidade de senha. Ele me passou um endereço para a reunião e continuou lá para estabelecer outros contatos. Ali era apenas o primeiro local de encontro, para, em seguida, sabermos o efetivo local da reunião. Assim, ele ia recebendo vários colegas e nos encaminhava para um apartamento no bairro da Aclimação, ou talvez fosse o Cambuci. Seria a primeira reunião de uma pré-coordenação das Frentes de Trabalho. Eu ainda não tinha 20 anos.
Ele explicou que pensava em uma estrutura de organização e mobilização que fosse ágil. Assim, poderia se deslocar com o menor enfrentamento possível com a repressão policial-militar. Era fundamental a existência de um organismo que, independente das orientações políticas e das diretorias dos centros acadêmicos, incentivasse o trabalho de mobilização e politização. As Frentes tiveram muito sucesso na FFCL/USP, que era responsável por catorze – isso mesmo: catorze! – cursos de graduação.
Cada grupo de cinco estudantes escolhia um coordenador. Cada cinco dos vários coordenadores também escolhia um coordenador que se relacionava com os outros grupos por seu intermédio e assim sucessivamente. Desse modo montava-se uma pirâmide com coordenadores eleitos por seus correspondentes e que compunham, assim, uma estrutura ágil. Essa estrutura também evitava que todos se conhecessem entre si, o que era vantagem em tempos de ditadura. Praticamente todos os grupos ou partidos de esquerda que tinham militantes universitários apoiavam e integravam as FTs. Elas também incentivavam o estudo e debates de textos políticos e sobre a história do Brasil.
A imprensa chamou de “setembrada” a esse movimento de rua que, em vários estados da federação, tinha enfrentado a ditadura com inúmeras passeatas e outros tipos de denúncias da política educacional e também da política econômica da ditadura. O volume das nossas vozes tinha aumentado. E muito!
Mesmo tendo, de modo ativo, participado da farsa de “eleição” do marechal Arthur da Costa e Silva em 3 de outubro, o Congresso Nacional foi fechado em vinte desse mesmo mês. O coronel Carlos de Meira Matos, que acabara de chegar da missão internacional de ajudar o exército norte-americano, comandando uma tropa brasileira na invasão da República Dominicana, comandou o cerco militar e o fechamento do Congresso a mando direto do ditador Castelo.
A ditadura soltou os estudantes presos no Congresso de São Bernardo. Nós, entretanto, além das salas de aula tínhamos mais um lugar de permanência duramente conquistado: as ruas do Brasil!!
O ano de 1967 começou com centenas de excedentes no país inteiro, aproximadamente mil apenas em São Paulo. A nota 5,0 nos exames vestibulares definia a aprovação. Aqueles que obtinham notas para aprovação e tinham excedido o número pré-determinado de vagas não eram matriculados, já que as administrações universitárias os consideravam “excedentes”. No ano de 1966, a minha turma que ingressou na Geo tinha dezessete excedentes. Lutamos muito e vencemos: foram todos matriculados, mas não houve necessidade de ir às ruas. Agora havia. E no Brasil inteiro. Conforme o horóscopo chinês, estávamos no ano da cabra. As Frentes de Trabalho voltaram às ruas e praças. “Queremos estudar! Abaixo a ditadura! Abaixo o imperialismo!”
Vencemos novamente! Tanto riso, oh quanta alegria... continuava a canção. Em São Paulo as FTs mudavam constantemente os locais de saída das manifestações que costumavam ocorrer no período da tarde. Eram sempre as praças do centro. A experiência foi apontando caminhos: havia grupos dedicados a fazer a segurança e evitar as provocações dos infiltrados, outros mudavam a quantidade de participantes sempre mantendo a flexibilidade e a segurança. Vários agrupamentos de esquerda que combatiam a ditadura incentivavam as FTs. Corríamos contra o vento e contra o sentido do trânsito, muitas vezes aos milhares, e recebíamos o apoio da população, quer fosse com papel picado quer fosse com aplausos ou sorrisos.
Naquele começo de ano houve troca de guarda na ditadura. O marechal Castelo Branco ia ser substituído pelo marechal Arthur da Costa e Silva. Creditam ao próprio Chico Buarque a paródia de Quem Te Viu, Quem Te Vê: “o meu nome é Castelo, e o teu nome é Costa/ o meu rima com belo, e o teu nome não rima”. Para essa troca de guarda, Castelo providenciou profunda reestruturação institucional: em 24 de janeiro promulgou uma nova Constituição, em 9 de fevereiro uma nova Lei de Imprensa, em 27 de fevereiro nova Lei de Segurança Nacional, em 28 de fevereiro o decreto-lei no 227 deu nova redação ao Código de Minas.
O periódico Jornal do Brasil, do então estado da Guanabara, apresentou em 12 de março de 1967 o seguinte balanço: “Durante o governo Castelo Branco (1 065 dias) foram praticados 3 747 atos punitivos (média de 3 por dia). Foram 116 cassações de mandatos políticos, 547 suspensões de direitos políticos por dez anos, 526 aposentadorias, 1 574 demissões (a maioria de funcionários públicos e de autarquias), 569 reformas de militares, 4 cancelamentos de uso de insígnias militares, 165 transferências de militares para a reserva, 60 cassações de medalhas, 4 cassações de aposentadorias, 2 cassações de autorizações, 1 descredenciação , 36 destituições, 5 disponibilidades, 75 exclusões da Ordem do Mérito Militar, 40 expulsões, 22 exonerações, 1 cassação de posto e patente. Além do grande número de atos punitivos, o governo Castelo Branco bateu o recorde na aprovação de leis oriundas do Executivo: 733 projetos.”
Em 15 de março o segundo ditador tomou posse. Que ele não era bem vindo já tinha ficado claro, em 25 de julho de 1966, quando foi alvo de um atentado a bomba, no aeroporto de Guararapes, em Recife-PE.
Mas o ano de 1967 se desenrolava, e, em maio, estávamos com a Revisão Especial, publicando os Acordos MEC-Usaid. Os acordos eram secretos. Baseavam-se no Relatório Atcon, que surgira em 1958, com o título de Anteprojetos de Concentração da Política Norte-Americana na América Latina na Reorganização Universitária e sua Integração Econômica. Não éramos somente nós, estudantes, que estávamos preocupados com uma profunda reforma na universidade.
Travassos em um Comício Relâmpago - 1967. Memorial da Democracia
Em 25 de junho desse ano foi realizada, pela primeira vez na história, uma transmissão mundial de TV ao vivo, via satélite. Uma apresentação dos Beatles interpretando All You Need Is Love foi escolhida como evento de estreia dessa nova tecnologia. Produzida pela BBC e transmitida de Londres para vinte e seis países simultaneamente, foi vista por cerca de 350 a 400 milhões de pessoas. Nós pichamos os muros de todo o país: “29º congresso da UNE – 2, 3, e 4 de agosto no Crusp”. Era a segunda fase, os quatrocentos delegados já tinham se reunido, em julho, no mosteiro de São Bento, em Vinhedo (SP). Enganamos a ditadura, e o Crusp tinha cruzado o Rio Pinheiros e já era muito conhecido em todo o país. A diretoria eleita da UNE era presidida por Luiz Gonzaga Travassos da Rosa-SP, e 9 vices: José Roberto Arantes de Almeida (SP), Nilton Bahlis dos Santos (RS), Luís Raul Machado (RJ), Jacques Zajdsznajder (RJ), José Carlos Novaes da Mata Machado (MG), José Carlos Moreira (PE), Peri (BA), Jari Cardoso (SP) e Edson (MG) (substituído por Edson Soares durante a gestão). Essa diretoria percorreu o país inteiro por várias vezes, organizou e dirigiu o combate à ditadura, se fez honrosa e honrou a todos que nas salas de aula e nas ruas insistíamos: “Abaixo a ditadura! A UNE somos nós!”
Em certa medida os Beatles também éramos nós. Nos cabelos despenteados e ao vento, nas roupas, na irreverência, no interesse pelo coletivo e sempre insistindo na participação política fora dos limites institucionais da ditadura. Ocupando as ruas e praças, tentando montar peças teatrais, ministrando aulas, datilografando apostilas para sobreviver e aprendendo muito com tudo isso. Exercitamos a solidariedade ampliando seus limites e tínhamos a mais absoluta certeza de que mudaríamos tudo. Qualquer coisa que significasse “tudo”.
What would you think if I sang out of tune/ Would you stand up and walk out on me?/ Lend me your ears and I'll sing you a song/ And I'll try not to sing out of key./ I get by with a little help from my friends/ I get high with a little help from my friends/ Gonna try with a little help from my friends... with a help from my friends... with a help from my friends...
Viva o sargento Pimenta! Longa vida ao sargento Pimenta! Salve a Banda do Clube dos Corações Solitários do Sargento Pimenta!!!
O ano de 1967 caminhava rapidamente para seu final e as temperaturas nas universidades, naquela primavera, subiam e superavam as do verão anterior. Havia boas notícias: o dirigente comunista Carlos Marighella estava em Havana/Cuba, participando da reunião da Organização Latino Americana de Solidariedade (OLAS). Ele anunciou seu rompimento com as teses conformistas do Partidão e conclamou a todos a enfrentar a ditadura com armas na mão e preparar as transformações que conduzissem ao socialismo. Inúmeros outros dirigentes comunistas históricos também romperam com o PCB não acompanhando, necessariamente, o valente baiano. Joaquim Câmara Ferreira (Toledo) e Marighella criaram e dirigiram a organização revolucionária Ação Libertadora Nacional (ALN). Ambos foram assassinados pela polícia política da ditadura, respectivamente em 1970 e 1969.
Muitas notícias davam conta de que inúmeros velhos comunistas, que tinham saído do Partidão, estavam também se reorganizando e dando vida a novos grupos e partidos políticos de esquerda.
Máscara Negra, de Zé Kéti e Pereira Matos, tirou o primeiro lugar no 1º Concurso de Músicas para o Carnaval, criado naquele ano pelo Conselho Superior de MPB do Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro. Independente da premiação, a música ficou o tempo todo na boca do povo. “Mais de mil palhaços no salão/ Arlequim está chorando pelo amor da Colombina/ no meio da multidão...” Antônio Callado lançou o seu Quarup. No III Festival da Música Popular Brasileira, promovido pela TV Record de São Paulo, Edu Lobo e Capinam ganharam o 1o prêmio com Ponteio. Em segundo lugar, ficou Domingo no Parque, de Gilberto Gil; em terceiro, Roda Viva, de Chico Buarque e, em quarto, Alegria, Alegria, de Caetano Veloso. Caetano, junto com Gil, e outros artistas, como o maestro Rogério Duprat, lançaram o movimento tropicalista, legítimos herdeiros que eram da verve e da irreverência do poeta e artista baiano conhecido como Cuíca de Santo Amaro.
O carnaval de Máscara Negra desse 1967 deu lugar a um fim de ano quando os ares se encheram de “caminhando contra o vento/ sem lenço e sem documento/ num sol de quase dezembro eu vou/ por que não...” de Caetano. “Vou beijar-te agora/ não me leve a mal/ hoje é carnaval. Raquel! Vou beijar-te agora/ não me leve a mal/ hoje é carnaval...” O ano tinha homenageado a todos com músicas com nomes de mulher, devidamente premiadas em festivais: Gabriela de Chico Maranhão, então aluno da FAU-USP; Margarida de Gutemberg Guarabyra e Carolina de Chico Buarque. É... o ano da cabra era mesmo feminino. Que venha logo 1968, o ano do macaco! As Frentes estarão prontas para lhe receber!
Esses inúmeros acontecimentos alvissareiros, entretanto, foram profundamente obscurecidos pelo assassinato na Bolívia, em outubro, do revolucionário Ernesto Guevara, o Che.
Fonte: https://cacamedeirosfilho.blogspot.com/2023/10/para-as-ruas-companheiros.html
Zé Arantes, nascido em Pirajuí (SP), assassinado em 4 de novembro de 1971 na rua Cervantes, Vila Prudente, em São Paulo. Seu corpo apresentava sinais de tortura.
Fernando Ruivo, assassinado a bala em julho de 1969 no Largo da Banana, na Barra Funda, em São Paulo – cidade onde nasceu.
Jeová, nascido em Araxá (MG), assassinado a bala em 9 de janeiro de 1972, no município de Guará, então estado de Goiás.
José Carlos Mata Machado, nascido no Rio de Janeiro (RJ), preso em São Paulo, em 19 de outubro de1973; assassinado sob tortura em 28 de outubro de 1973, em Recife (PE).
Marighella, baiano da cidade do Salvador, assassinado a bala, em uma tocaia, em 4 de novembro de 1969 na Alameda Casa Branca, na cidade de São Paulo. Tinha 58 anos.
Toledo, paulistano, preso em 23 de outubro de 1970 na avenida Lavandisca, bairro de Indianópolis e assassinado, no mesmo dia, sob tortura em um sítio clandestino em São Paulo. Tinha 57 anos.
Referências Bibliográficas.
DOSSIÊ – Mortos e Desaparecidos Políticos no Brasil. Disponível em: http://www.desaparecidospoliticos.org.br. Acesso em 14 ago. 2014.
POERNER, Arthur José. O poder jovem: história da participação política dos estudantes brasileiros. 2. ed. rev. amp. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979.
SANFELICE, José Luis. Movimento estudantil: a UNE na resistência ao golpe de 64. São Paulo: Cortez, Autores Associados, 1986.
SILVA, Hélio, CARNEIRO, Maria Cecília Ribas. História da República Brasileira. São Paulo: Ed. Três, v. 19, Março-64: 1965-1968, 1975.
SOB AS ORDENS DE BRASÍLIA, Em Enciclopédia Nosso século: 1960/1980. parte 1, Ed. Exclusiva para o Círculo do Livro, São Paulo: Abril Cultural, 1986.
UNIÃO NACIONAL DOS ESTUDANTES. História da UNE: depoimentos de ex-dirigentes.. v.1, São Paulo: Livramento, 1980 (Coleção História Presente).
1 Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 12 mar. 1967, Caderno Especial “Os 1065 Dias de Castelo”, p. 3.
O autor agradece a leitura atenta e as pertinentes observações de Zilda Junqueira e Lual Fernandes.