Diomar da Rocha Santos Bittencourt (2008?)
No dia 16 de dezembro de 1968, correram noticias sobre uma possível invasão do CRUSP. Não era uma grande novidade, pois isso já tinha acontecido muitas vezes antes. Eu tinha um fusca alemão, 1959, comprado para dar aulas no [colégio] Alberto Conte, em Santo Amaro. Piauí pediu para escondermos um saco de estopa cheio de livros "subversivos".
Ele ou eu chegamos à brilhante conclusão que um bom lugar era embaixo da ponte do Pirajussara, na avenida da Raia. Anos depois perguntei ao Piauí se ele tinha recuperado os livros. Não só não recuperou, como nunca voltou ao CRUSP para pegar as coisas do apartamento. Seu telescópio refletor de 2 metros de comprimento, que ele mesmo tinha construído em um curso do Planetário do Ibirapuera foi apreendido e exposto no saguão dos Diários Associados, como exemplo de artefato de observação militar. O telescópio astronômico só servia para observar os anéis de saturno , montanhas e crateras na lua...
Por volta de 20 horas desse mesmo dia, veio uma informação dada pelo Franco Montoro de que o CRUSP seria invadido pelo Exército. Várias pessoas me pediram para eu as levasse para fora da USP, não me lembro quem eram, provavelmente o Piauí e o Dilson (que já eram perseguidos) . As levei para uma casa perto do Largo de Pinheiros (seria a casa do Álvaro?)
No nosso apartamento (B 602) , estávamos eu e o Pedro Paulo de Martini, pois o Caio já tinha ido para a casa da namorada. Chegamos à conclusão que não tínhamos para onde ir e que devíamos ficar em nossa casa. Estacionei o fusca em baixo do Bloco D ou F e fomos dormir sem grandes preocupações.
Acordamos cedo, na madrugada do dia 17, com os avisos de que o CRUSP estava sendo invadido. Ainda desci e caminhei pela marquise até a avenida da História e Geografia, onde os tanques e caminhões estavam passando. Alguns colegas passaram pelos veículos e escafederam-se pelo prédio da História . Sábia decisão. Voltei para o apartamento e fiquei observando a movimentação militar . O Pedro Paulo tinha muitos livros de Ciências Humanas. Tive a idéia de esconder os livros mais comprometedores atrás do espelho da pia e entre as cordas trançadas das cadeiras , o que deu certo.
Tanques e caminhões pararam em frente aos blocos A e B. Os soldados desceram e movimentaram-se furtivamente, rastejando, correndo, tomando posições de batalha. De repente a sirene colocada no teto do boco B tocou. A maior parte do moradores aguardou os soldados no saguão do andar. Os soldados chegaram , abriram os apartamentos, enquanto um deles, armado com fuzil e baioneta, ficava nos vigiando.
Os militares ficaram irritados com a sirene e alguns deles subiram no teto do prédio e localizaram a sirene , cujos fios iam até um determinado apartamento. Uma parede de madeira foi arrancada e descoberta uma arma. (Acho que isso fez parte da exposição no saguão dos Diários Associados). Assistimos então um desfile, do alto comando que foi ver a descoberta. Comentaram, depois, que ao abrir uma parede de madeira, a encontraram cheia de armas.Durante esse tempo ficamos guardados por um ou mais soldados que se revezavam . Todos sentados no chão, devido ao cansaço.
Um hispano-americano, que tinha chegado no dia anterior, levantou-se para olhar pela janela. O soldado não se incomodou com isso, pois estava sentado na escada que dava para a casa das máquinas dos elevadores. Mas chegou um segundo soldado, e gritou para ele obedecer e sentar como os outros. Só que ele não entendeu e ficou olhando o soldado. Isso irritou o soldado que deu um chute na perna dele. Nesse momento falei que ele não entendia português e que estávamos sentados por causa do cansaço. O soldado xingou o estrangeiro mas se acalmou.
Fomos chamados, um a um, em cada apartamento. Um morador do 601 se identificou como reservista da FAB. Foi imediatamente levado embora. Consta que ficou preso alguns meses na Base Aérea de Guarulhos. Me identifiquei como morador do 602 e entrei junto com um soldado para inspecionar o apartamento. Mostrei meus armários de roupas e livros e voltei ao saguão. Alguns colegas se identificaram como moradores de outros apartamentos para evitar problemas.
Durante a tarde um soldado perguntou se os apartamento tinham banheiro. Respondi que sim e ele entrou no meu apartamento e fechou a porta. Fiquei preocupado, pois tinha pregado um cartaz de apoio ao Vietnam. Como a porta tinha ficado aberta o dia todo, ninguém tinha visto o cartaz. Pensei que seria denunciado, mas nada ocorreu. Conclui que ele não tinha dado importância ao cartaz. Na verdade, ele tinha arrancado o cartaz e escondido entre o colchão e o estrado da cama, o que descobri no dia seguinte ao voltar para o CRUSP.
Estávamos cansados e com fome quando um soldado resolveu se exercitar um pouco. Ele parava frente a um de nós, pulava e caia com as pernas abertas, ao mesmo tempo que empunhava o fuzil e espetava a baioneta na parede de madeira, numa posição um pouco acima da cabeça de cada um de nós. Ficava se vangloriando, tentando nos provocar. Todo mundo ficou quieto e ele se cansou da brincadeira. Quando finalmente saímos do prédio o CRUSP estava surpreendentemente vazio. Havia alguns poucos estudantes. Fomos então levados ao Presídio Tiradentes, por um camburão da PM.
Ficamos no saguão até aproximadamente 16 horas. Por volta desse horário os moradores, do sexto andar do bloco B, saíram escoltados pelos soldados. Não sabíamos o que ia ocorrer. Esperamos embaixo da marquise e alguns outros cruspianos juntaram-se a nós. Lembro-me de encontrar um cruspiano que gostava de lutar kung-fu e ficar a fazer aqueles exercícios estranhos, movimentando lentamente mãos e pés. Era o Mané?
Fomos levados a um camburão da PM. Branco e preto, sem janelas , apenas tubos laterais, com uma abertura de cinco cm voltadas para baixo. O percurso foi muito rápido. Lembro que passamos em frente ao cine Windsor na Av. Ipiranga e dava para ver as pessoas nas calçadas e o barulho da cidade.
Nunca me senti tão estranho, barulhos familiares e ao mesmo tempo a sensação de estar completamente longe de tudo.
Quando chegamos ao Tiradentes, desembarcamos no pátio e esperamos. Havia um portão fechado que dava para o pátio. Quem estava do outro lado do portão, nos via através de frestas, mas nós não víamos nada. Aproximamos para conversar e saber onde estávamos. Um presídio feminino?????
"Quem são vocês? Somos estudantes. Mas estão prendendo estudantes? Eu quero um prá mim! Ai tesão, vem cá lindinho!"
Foi um momento de descontração.
Depois de algum tempo o portão foi aberto, mas elas não estavam lá. Fomos encaminhados para uma cela de aproximadamente 3x8 metros que ficou tão cheia que não dava para sentar.
Do lado do corredor uma porta de aço com uma pequena janela. Do lado da Av. Tiradentes um vitrô e uma pequena mureta que escondia uma latrina, do tipo de privada turca e uma pequena pia.
O calor e o cheiro eram insuportáveis. Entre o cheiro e calor preferi ficar ao lado do vitrô, pois ao menos podia olhar para fora. O vitrô era de vidros fixos e percebi que os vidros tinham sido colocados recentemente pois a massa de vidraceiro estava mole ainda.
Comecei a tirar os vidros e a temperatura e o cheiro começaram a melhorar. Alguém chegou e disse que eu não devia fazer aquilo, pois seriamos punidos. Nas poucas horas que fiquei preso, vi como perder a liberdade muda o ser humano. Tudo que tínhamos passado pareceu pouco naquele instante. Nunca vi tantas pessoas desesperadas e desnorteadas.
Por volta de 19 horas, correu a noticia que haveria comida, mas que alguém tinha avisado de que só deveríamos comer a carne, pois o resto estava azedo. Saímos da cela para comer. Cada um recebeu um prato de plástico. Nada de talheres. No corredor, uma fila se formou, no chão água empoçada e uma pessoa servindo os pratos. Três panelões com arroz, batata cozida e tiras de carne cozida. "Arroz, batata? Não, só um pouco de carne".
E mesmo a carne só comi um pouco. Dizer que o bandejão do CRUSP era muito melhor é dizer pouco da qualidade da comida. Será que hoje melhorou? Estou falando dos dois lugares...
Voltamos à cela e aguardamos. Por volta de 23 horas começaram a chamar pessoas, algumas pelo nome e outras, ao acaso. De repente, nos vimos sem nenhuma pergunta, na Avenida Tiradentes. A sensação de estar fora foi indescritível. Estava eu, Pedro Paulo e mais uns dois ou três. Resolvemos ir a pé para o Centro.
Fomos para um hotel fuleiro, mas que tinha tido seu tempo de glória, na avenida São João, logo depois do Correio.
Dormimos pouco e no dia seguinte fiz uma ligação a cobrar para a casa de meus pais.
"Mãe, o CRUSP foi invadido pelo Exército, fui preso mas já estou solto, não ligue para o que os jornais publicarem, daqui estou indo para a casa do tio Laé.
"Não se preocupe meu filho, se eles te prenderam os errados são eles, pois sei quem você é."
Nos dias seguintes, como a notícia correu, ela respondia aos amigos e vizinhos que eu não era nem vagabundo nem subversivo e que uma ditadura militar tinha tomado conta do Brasil. Como boa filha de espanhola dizia: - Hay gobierno, soy contra!" Que Deus a tenha!
Eu tinha que voltar ao CRUSP. Meu fusca 59 tinha ficado lá, estacionado debaixo do bloco F(ou D). Mais importante, minha pasta com os todos os diários de classe do Alberto Conte , onde eu dava aulas de Física. Eu tinha ficado em São Paulo exatamente para comparecer aos conselhos de classe de fim de ano. Para quem não sabe, era uma reunião de professores de final de ano onde era decidida a aprovação final dos alunos do colégio Quem tinha ficado em quatro ou mais matérias estava reprovado, e nem entrava para ser discutido em conselho.
Quem estava com três matérias entrava em conselho e tinha que ser aprovado em pelo menos uma para poder fazer a segunda época. A grande reprovação era em Inglês e Matemática, em seguida Física e Português. A negociação em geral era: ah, fulano é muito ruim e tem que ficar de segunda época na minha matéria. Eu sempre achei (e continuo achando) que Física é cultura geral, que só serve para passar no vestibular, e sempre aprovava os alunos no conselho, para que fizessem a segunda época. Em suma eu precisava recuperar meus diários de classe e garantir meu emprego em 1969, afinal nem formado eu era.
Fui de ônibus para a USP e acabei chegando ao CRUSP pela avenida da Raia. O ônibus passava lá? Não lembro. Ou peguei uma carona para entrar na USP? Os pobres neurônios não lembram, talvez eu devesse fazer uma regressão!
Resoluto, caminhei em direção à marquise. Avistei um soldado armado parado em frente à portaria do Bloco B. Não arrefeci o passo.
"Que você quer?"
"Vim pegar meu carro e minhas coisas."
Obviamente essas não foram as palavras usadas mas vamos nos permitir uma certa liberdade.
Enfim eu tinha que ir falar com o coronel Alvim. Se lembro bem ele tinha montado seu quartel-general no saguão do Bloco F (pode ser o D). Expliquei a situação e ele respondeu "não quero nem saber". "Então o senhor me dá uma declaração que meus diários de classe estão retidos pelo Sr. Entrego ao diretor da escola e o problema não é meu."
O coronel ficou bravo , chamou um tenente e ordenou que ele me acompanhasse ao apartamento para retirar a maleta e só a maleta do apartamento, e pegasse meu carro.
No trajeto entre o bloco F e B conversei com o tenente. Tivemos aquela típica conversa de brasileiros que não se conhecem e tem pouco tempo para se conhecer. Parece um pouco como as formigas andando em fileiras e cada uma parando um pouco em frente das outras. Quando entramos no apartamento fiquei desolado, estava todo revirado como mostrado nas fotos do Paulo Negrão. Morador do CRUSP há mais de quatro anos, eu tinha tirado todos meus pertences pessoais da casa de meus pais, livros, discos, fotografias, e até uma coleção de gibis.
O tenente falou que era melhor eu pegar tudo que eu podia pois achava que o coronel ia impedir as pessoas de recuperarem seus pertences. Peguei tudo do apartamento. Quando terminei falei que tinha um primo no apartamento 302 e se podia pegar as coisas dele também . Ele concordou e peguei as coisas do Edgard, que é primo de meus primos, ou seja um contra-primo.
Sai do CRUSP, cumpri com minhas obrigações no Alberto Conte e fui para Lorena passar o fim de ano.
Em janeiro de 1969, os três moradores do B-602, Pedro Paulo De Martini (Pedagogia), de Tietê, Caio Sérgio Vasques Calçada (Poli Elétrico), de Birigui, e eu, Diomar da Rocha Santos Bittencourt (Física), de Lorena, fomos morar juntos na praça Benedito Calixto, apartamento 402 do prédio que ficou conhecido com Cruspinho.