Antonio Carlos Rocha (Carlinhos) – 2008?
Naquele 16 de dezembro todos (?) sabíamos da possibilidade da invasão militar ao Conjunto Residencial. À tardezinha, tinham começado chegar informações desencontradas a esse respeito, e o próprio Palácio dos Bandeirantes parece ter sido a principal fonte do vazamento. Foi marcada uma assembléia para às 21 horas, que terminou melancólica. Não havia o que fazer. Nenhum canal de negociação, ou tempo, ou possibilidade de abri-lo... A maioria dos moradores sequer compareceu. Foi dormir como se nada estivesse para acontecer e acordou com o barulho dos tanques...
Seria lisonjeiro dizer que ficamos, só como um ato político de resistência, mas a verdade é que não tínhamos para onde ir. Decidiu-se apenas pela formação de grupos de vigia e vigília que espalharam-se pelas marquises dos blocos. Por volta de 5:30 da manhã começamos a avistar ao longe, pelos lados do CREPE e da Reitoria, embora um pouco encobertos pela neblina, a silhueta dos tanques. O CRUSP estava cercado e não havia mais tempo para arrependimentos. Não houve ocupação imediata dos Blocos (pelo menos do G).
Os moradores desceram voluntariamente até os corredores do Conjunto, e passamos a manhã e grande parte da tarde, em pé, com fome, cercados pelos soldados e sua matilha de cães. O Centro de Vivência também não foi ocupado de imediato, dando tempo para pegarmos alguns livros da Banca da Cultura e tornar as horas menos longas. Por volta de meio dia, um oficial começou a procura pela identificação dos moradores do G 310, que era o apartamento que eu ocupava. Estavam atrás do proprietário de um grande volume de dinheiro encontrado em uma das gavetas do apartamento.
O Norivaldo se identificou conseguindo ser convincente nas explicações e por isso foi imediatamente liberado. Era o Diretor do Bar da Aurk (Centro Acadêmico) e estava com todo o dinheiro para o pagamento dos funcionários e fornecedores. Deram-lhe um recibo com papel timbrado do exercito , e o roubo foi oficialmente consumado. Guarda o recibo até hoje...
Devia ser mais ou menos 18horas quandofomos embarcados em ônibus , um verdadeiro combôio, atéo presídio Tiradentes. Estava escuro quando chegamos. Não sei por qual critério fomos distribuídos pelas celas. As meninas ficaram separadas . Naquela noite o cansaço não permitiu nenhuma insônia.... No dia seguinte ficamos sabendo que as moças e grande parte dos cruspianos haviam sido soltos, durante a noite. O restante foi reagrupado em um número de uns vinte por cela. Começaria aí a interminável espera pelas listas de soltura, divulgadas todo el dia, pela manhã e pela tarde.
Na prisão a gente perde um pouco a noção do tempo, mas não demorou tanto a adaptação.O Lingüiça (Física) logo organizou uma eficiente rêde de suborno, e mesmo com o pouco dinheiro que tínhamos dava para conseguir cigarros e lanches vindo de fora. Fatos importantes acontecidos agora se escapam, foram apagados da memória. Outros sem muita importância acabaram ficando. Aproveito para registrar um dêles. A cela que ocupábamos era mais ou menos espaçosa. A vizinha , onde estava os demais colegas também. Ambas davam para um corredor defronte a um muro baixo sobre o qual se via o céu e o inferno...
Acima o azul do céu dos dias ensolarados de dezembro. Pouco mais abaixo , algumas solitárias que pareciam desocupadas, exceto uma: a do Paredão, com um psicopata com longa pena a cumprir. Dizia ter matado “ uns seis ou sete”. Fazia côro conosco quando cantávamos , e tinha fixação em perguntar sempre ,se já tínhamos visto “essa tal de mini-saia.” Deve ter morrido por ali, sem conhecê-la... Não me lembro de vasos sanitários nas celas. Nem de água ou banho. Apagaram-se minhas Lembranças, com relação a isso.
Fizemos uma verdadeira anarquia no presídio. Uma gritaría que deve ter incomodado bastante os carcereiros. Quando batíamos nas grades e gritávamos parece que o Tiradentes inteiro gritava junto... Nos últimos dias passávamos o tempo esperando, esperando e compondo e cantando paródias gozando os militares. (ainda guardo a letra de uma delas). Desconfio que depois de um certo tempo os guardas começaram achar graça de tanta irreverência...
Dois dias antes de nos libertarem saiu uma lista, mas ao contrário, porque em vez de nos libertar fomos enviados a um lugar muito temido: o DOPS. Dez dos presos (inclusive eu) fomos transferidos para lá. Os demais ganharam a liberdade. Uma espécie de micro ônibus nos transferiu para lá. Por coincidência (pelo menos sempre pensei que fosse) do lado de fora, me esperavam meus primos (Célia e Beto Bergamasco) que conseguiram me passar, pela janela do veículo, um pacote de goiabada. O gosto da fruta já saiu da boca, mas ficou o gesto na lembrança...
No DOPS o clima tornou-se mais sombrio. Não dava mais para seguir com as brincadeiras. Fomos fichados e não tínhamos idéia do que poderia vir pela frente. Ficamos os 10 na mesma cela. Já me esforcei bastante mas não consigo lembrar da maioria. Talvez alguém lendo esse depoimento possa me ajudar. Me lembro do Xavier da Pedagogia, do Cavalcanti (não sei de que curso), e de um japonês. Defronte a nós estavam presos dois falsários. Eram proprietários de uma “fabriquinha” de notas falsas. Ainda bem que o Lingüiça já tinha saído, porque se não era capaz de querer conhecer a tecnologia...
No último dia, o Bomcristiano, delegado do DOPS (O Fleury ainda não havia assumido a Chefia) nos enfileirou no saguão da entrada e iniciou uma longa preleção . Éramos uns idiotas, cretinos (não falava palavrão) e que sabia de todas nossas atividades subversivas.
Ao Cavalcanti, foi atribuída uma ficha muito extensa. O mesmo jurava que estava lá por engano, e que havia um homônimo, talvez o verdadeiro autor das atividades descritas. Tenho certeza que dizia a verdade. Ao Xavier não me lembro quais eram as acusações. Talvez fosse o único com envolvimento em atividades mais “pesadas”. A mim , transformaram em diretor de um jornal chamado Nova Dimensão, do qual jamais tinha ouvido falar.
O ÚLTIMO A SAIR
Quanto ao japonês, o Delegado parecia ter implicado muito com êle, ou exercia mesmo atividades por nós desconhecidas. Foi o único do grupo que não foi solto. Foi o último a sair. Seu nome era Kunio...
Carlinhos- E603 – F (não sei das quantas) e G 310