Rute Maria Bevilaqua (2008?)
O dia da invasão do CRUSP foi um desses dias, inesquecíveis na vida de todos nós. Na verdade estávamos esperando pelo pior desde a publicação do AI-5, très ou quatro dias antes. Eu morava no 209-A com a Julia e há dias já dormíamos em colchões no chão, de medo que o CCC voltasse, atirasse da rua e fôssemos atingidas pelas balas, que, acreditávamos, atravessariam facilmente a divisoria fininha da fachada do prédio. Na noite anterior a gente quase não dormiu.
Olhávamos ainda a noite pela janela quando ouvimos o barulho longe dos tanques que se aproximavam. Todas tivemos que descer e eu me sentia um caco de gente, depois de tanta tensão, enquanto estávamos reunidas ali, em pé, na frente do bloco A, naquela madrugada molhada. Eles chamavam os moradores para acompanhar os policiais até seus apartamentos, depois de já terem feito o pessoal descer.
Quando chamaram o 209-A, me apresentei com a Julia. Dois policiais nos levaram até lá. Nossas paredes estavam forradas de recortes de revistas com fotos do Che Guevara. Em algumas ele aparecia como um galã de Hollywood, calça jeans, sem camisa, fumando Havanas; tínhamos Che de todo jeito. Numa moldura bonita, presente do meu irmão, havia uma foto de meu ídolo na sua pose clássica, aquela da estrelinha na frente da boina. O policial foi objetivo, pegou o quadro da parede e disse: " Este merece ser levado". Num instante, o quadro já estava em minhas mãos, disse:" Esse não". E, já com o quadro no chão, pisoteava o pobre do Che, como uma possessa, enquanto pedia desculpas a ele em voz alta: "Desculpe Che, mas não vou deixar te levarem".
Enquanto rasgava a foto do meu herói, em mil pedaços, chorava como uma desesperada. Acho que assustei os presentes. Ouvi um dos policiais sair e gritar no corredor: "a moça está tendo um chilique histérico". Depois do fechamento do crusp, quando fizeram aqui em São Paulo uma exibição das coisas subversivas que encontraram lá, não puderam mostrar o "meu" Che e fiquei contente com o que fiz. Julia foi maravilhosa comigo aquele dia e em muitos outros também. Sempre foi uma grande amiga. Muito mais equilibrada que eu, solidária, ela ficou comigo o tempo todo no dia em que eu mais chorei na vida. Ela sabia que eu era do tipo que quando começava a chorar não parava mais, talvez fosse a TPM, sei lá.
Ficamos um tempão no Centro de Vivência e , como muitos dos que ali estavam, fui à Banca da Cultura e peguei um livro. Há anos tento me lembrar qual era o título dele e não consigo. Só sei que não era um livro grande. Eu estava morrendo de vergonha de todos verem que eu tinha chorado muito, sempre detestei ser "manteiga". Bobagem minha,.... Meus colegas ali não podiam estar nem aí com a choradeira de ninguém. Acho que era como se o mundo de cada um de nós estivesse desabando.
A caminho do presídio, como se estivéssemos voltando de tardezinha de um piquenique, no painel do ônibus se lia "Colegial" (era isso mesmo???) e um policial, ao lado da porta do motorista, portava uma arma de cano longo e olhava pra gente. Julia e eu sentamos no mesmo banco, mais ou menos no meio do ônibus, e eu estava perto da janela. Quando o ônibus ia entrar na Rua Rego Freitas, na esquina da Consolação, pertinho da minha casa, joguei fora o livro que tinha pego na Banca da Cultura com um bilhete na primeira página.
Nunca esqueci esse pedacinho do trajeto. Eu ainda me lembro de um solzinho de fim de dia, que foi cinzento e chuvoso caindo sobre as pessoas que tentavam atravessar a rua e olhavam o ônibus. O ônibus continuou antes que eu visse alguém pegar o livro. No bilhete, eu dava dois números de telefone, explicava que estávamos sendo todos presos, "centenas de pessoas", naqueles ônibus e pedia que quem pegasse o livro, por favor, avisasse meus pais. Imaginem o tamanho da idiotice e das conseqüências: meus pais eram comunistas, com várias passagens pelo DOPS.
Naquele dia, o mais comprido da minha vida, mais emoções nos esperavam. Ver a fila de prostitutas deixando a cadeia para dar lugar para a nossa entrada foi uma cena que nunca vou esquecer; o aparecimento de um cacho de bananas, depois de horas de fome, naquele pátio sujo. Nos recusamos a entrar nas celas. Imagino que nosso protesto para não entrar nas celas, também tenha tido sucesso, porque realmente não havia muito lugar onde nos colocar, éramos muita gente.
Eu e um grande número de meninas não chegamos a entrar em cela alguma. Ficamos no pátio até que nos mandaram embora da Tiradentes. Finalmente, já muito tarde, um jantar de decisões de esfomeadas no Frajola, onde Julia e eu devoramos uma pizza gigante.
O 17 de dezembro de 1968 foi assim para mim.