Registros Cruspianos

Álvaro -- dez/1994

Diligentes amigos ex-cruspianos pedem-nos lembranças dos velhos tempos de CRUSP. A idéia é compor um almejado livro que, de alguma forma, registre aquele instigante e intenso pedaço de nossa história. O que colocar no papel? Por onde pegar meu querido CRUSP? Em qual das mil facetas que marcaram tanto meu espírito me fixar?

Eu, um jovem interiorano de Batatais, com deliciosas infância e adolescência vividas no cerrado da alta-mogiana, dado a grandes amizades, aventuras e brincadeiras, já comunista ainda no colegial, e que por certo encontrou no CRUSP, desde a chegada em 1965, tudo que um jovem assim vivido e formado poderia mais gostar de encontrar: amizades, bagunças das boas, aventuras, e ideologia e política pra ninguém botar defeito. Não há como, ou apenas não sei, organizar essas impressões. Achei melhor  deixar brotar soltas as lembranças e tentar registrá-las da melhor maneira possível. Vamos ver no que dá. -- Álvaro - 602 E

PRIMEIRO UMA POESIA PRA GENTE SE CONHECER MELHOR

IDÍLICA ESTUDANTIL  (Alex Polari)

Nossa geração teve pouco tempo começou pelo fim mas foi bela a nossa procura ah! moça, como foi bela a nossa procura... mesmo com tanta ilusão perdida quebrada, mesmo com tanto caco de sonho onde até hoje a gente se corta.

O ROUBO DA BANDEIRA

Se não me falha a memória, foi no 7 de setembro de 1966. Houve ali perto do Balão da História uma cerimônia cívica com banda da Força Pública, milicos do Exército (acho que o Chefe do 2º Exército estava lá) aos montes e autoridades universitárias. Bem na nossa fuça, isso era demais e não poderia ficar assim, em brancas nuvens. Eu e o Malaman então combinamos o troco. Nem me lembro onde arranjamos dois macacões cinzas, desses de funcionários qualificados. Ficamos então, como se dizia na época, "de botuca". Eu tinha uma Vespa (alguém se lembra?, não foi por muito tempo, a polícia logo seqüestrou minha querida vespinha), já no final da cerimônia, quando autoridades e público começavam a se dispersar, montamos na Vespa e fomos para o local. Chegamos os dois muito sérios, estacionei a vespa, descemos, nos perfilamos, fizemos continência e iniciamos a descida da bandeira brasileira do mastro principal. Devagarzinho, como manda o protocolo. Nem olhávamos para os lados. Descerrado o pavilhão, desprendemo-lo da corda, e, mui respeitosamente dobramo-lo solenemente. Sentíamos que todos nos olhavam um pouco atônitos, mas não perdemos a pose e nem manifestamos qualquer vacilação em nossa operação. Pegamos a bandeira já dobrada, nos perfilamos outra vez, novamente a continência, subimos na Vespa e saímos sem olhar para trás.

Gargalhadas e gritos de vitória somente já perto do CRUSP. Como não poderia deixar de ser, fomos recebidos como heróis aquele dia. Essa bandeira ficou muito tempo comigo. Mesmo depois de sair do CRUSP levei-a para casa e ficava guardada no fundo de uma gaveta. Como minha casa abrigava muita gente clandestina, a Maria do Carmo achou por bem que deveríamos nos desfazer da histórica bandeira, pois em caso de uma batida da polícia teríamos imensa dificuldade em explicar o que fazia lá aquela enorme bandeira brasileira, em que ação iríamos usá-la. E foi assim que demos sumiço final àquele perigoso símbolo subversivo. -- Álvaro  602 E

A ESTIVA

Em 1965, para tentar barrar o anunciado aumento de preço das mensalidades e das refeições, fizemos nosso primeiro grande movimento, que, em falta de outras alternativas mais contundentes, optou pelo boicote ao Restaurante. Até aí tudo bem, mas tínhamos que comer. Sem problemas, formou-se uma brigada de cozinheiras, panelas e fogões foram conseguidos com alguns Centros Acadêmicos. E os gêneros alimentícios, como iríamos arranjar? Feita uma caixinha maluca, era preciso providenciar a compra de arroz, feijão, cebola, batata e tudo o mais. Grandes volumes. Centenas de bocas famintas. A responsabilidade foi assumida por mim, Álvaro (Geologia - Batatais), pelo Mineiro (Poli Civil - Ponte Nova MG), pelo Malaman (Poli Naval - Taubaté) e pelo Sílvio Preto (Física - Bauru). Trabalho pesado, ir à região do Mercado Central para comprar em grande quantidade e mais barato. Coisa braba carregar sacos e mais sacos de mantimentos e trazer para nossa cozinha coletiva no CRUSP em uma Kombi caindo os pedaços. O apelido para o grupo não poderia ser mais apropriado, saiu naturalmente, a Estiva. Como também naturalmente cresceu uma forte identidade e amizade entre seus membros. Para tudo que se referisse a trabalho pesado, por muitos anos a solução era chamar a Estiva. Éramos inseparáveis. Quantas bagunças, quantos acampamentos de férias,quantos assaltos à dispensa do restaurante, não fizemos juntos. A eterna Estiva: Álvaro, Mineiro, Malaman e Sílvio Preto. -- Álvaro  602 E

DA PRIMEIRA PASSEATA NINGUÉM SE ESQUECE...

 Foi então decidida uma grande ousadia, iríamos para as ruas fazer a primeira grande passeata contra a Ditadura. Em 1967, não me lembro exatamente dia e mês. Bom lembrar que até então manifestações públicas eram impensáveis. Todos trazíamos sufocados na garganta os gritos contra os milicos, a ditadura, os gorilas. Participei da organização da passeata tanto pela Geologia, como pelo CRUSP. Tudo perfeitamente combinado, de onde partiríamos, o trajeto, a  atitude frente à repressão. E na hora combinada, final de tarde, seguimos para o local de encontro e partida, o Lgo. Paissandu. A orientação era não enturmar, disfarçar de simples transeuntes, até o sinal para a largada.

Nunca se viu tanto transeunte jovem ali pelo Largo e calçadas próximas. A vontade era dar um puta de um abraço quando cruzávamos com conhecidos, mas resistíamos a esses impulsos para não chamar a atenção sobre nossa presença. No auge da ansiedade ocorreu-me uma idéia genial, sentei em uma cadeira de engraxate e logo meus surrados sapatos estavam sendo engraxados. A hora ia se aproximando e meu coração queria sair do peito. E o momento chegou, das escadarias do Cine Paissandu veio o grito que estava preso em nossas gargantas: ABAIXO A DITADUUUUURAAA!!!!!!!! Gritos iguais e agora compassados vinham de todos os lugares da região. Meu grito foi acompanhado de um pulo enorme da cadeira do engraxate (que imagino tenha passado perto de um enfarto). Em segundos já estávamos todos na avenida pondo os gorgomilos de fora: ABAIXO A DITADURA! ABAIXO A DITADURA! ABAIXO A DITADURA! ABAIXO A DITADURA!

Em minha lembrança aquele colossal e lindo primeiro grito foi dado pelo Jeová. Preciso conferir. Em um certo trecho, já bem distante do Largo Paissandu, comecei a sentir uns incômodos esquisitos nos pés. Sem parar a marcha dei uma examinada. Que surpresa, eram aqueles pedaços de couro grosso que os engraxates enfiam entre o couro do sapato e o pé para evitar que as meias se sujem de graxa. Com uma pena muito grande do engraxate, que quase deve ter morrido de susto, guardei por muito tempo esses caros troféus.

Muitas passeatas se sucederam, cada qual com sua história e suas estórias, mas essa primeira foi a mais emocionante, a mais bonita, a que mais nos marcou os corações. -- Álvaro  602 E

A  LAGOA

De repente descobrimos a lagoa. No fundo de nosso quintal, uma imensa lagoa selvagem. Buracão resultante da exploração de areia para a construção da Cidade Universitária. Água límpida, deliciosa. Consegui, fingindo muita responsabilidade, ser indicado pelo Fundo (hoje Prefeitura da Cid. Universitária) como seu “elo de contato” para assuntos da lagoa. Assim foi feita a “prainha”, onde curtimos tantos banhos de sol. E de lua, que ninguém é leão, ou leoa. Por muito tempo a prainha competiu em pé de igualdade com o “muro da vergonha”.

Mas nem só de banhos curtimos a lagoa. Lá para a direção da Poli o que dava de peixe não estava escrito. Vivendo em um "jardim" de plantas aquáticas, carás imensos, traíras, e até um ratão do banhado povoavam aquelas águas. O Piauí deu a brilhante idéia: fazer pesca submarina. Munidos de endereços que ficavam no fim do mundo de Santo Amaro, fomos lá comprar a preço de banana os apetrechos necessários: snorkel, máscara, pé-de-pato e o mortal arpão de borracha. Fazíamos nossas pescarias sem muito alarde, para conservarmos aquela regalia tão próxima somente para alguns poucos abençoados: eu, Pajera (Geografia), Piauí (Física), Sílvio Preto e outros poucos. Foi muito peixe que tiramos daqueles cenários subaquáticos paradisíacos.

Já bem mais adiante, acho que aí pelo final de 1967, aconteceu um fenômeno desastroso. Em uma grande chuvarada o rio Pinheiros verteu suas pútridas águas para dentro da lagoa através de alguns bueiros/ladrões que a ligavam com a calha do rio. Pela composição química daquelas águas poluídas houve um processo de floculação de argilas e as águas da lagoa turvaram-se completamente. Acabou-se o que era doce, banhos, folias, namoros e pescarias. Bem mais tarde, não sei em que ano, a nossa lagoa querida passou a chamar-se Raia. Fora "civilizada" e transformada em Raia Olímpica destinada ao esporte do remo. -- Álvaro  602 E

GREGÓRIO, O PROTETOR DAS VIRGENS

Eu e minha querida Maria do Carmo, grande amiga da Estiva, já namorávamos há tempos. E como todos os casais de namorados do CRUSP explorávamos todos os escurinhos do pedaço: Lagoa, Parte de trás do Restaurante, Piscina, Muro da Vergonha, Cinema no Centro de Vivência e outros locais menos votados. Carro para ir a um Drive-In, não tínhamos, dinheiro para um hotelzinho maneiro, nem pensar. Foi então que as deusas do Amor engendraram um grande plano: Emília e Kikuko sairiam para jantar e eu, sorrateiramente, sem que o Gregório percebesse, subiria ao apartamento delas para, pela primeira vez, experimentarmos uma gostosa caminha. Burlando o velho jagunço consegui entrar no prédio (F) e fui direto para o apartamento onde a amada me aguardava. Entrei e começamos os preparativos. Quando íamos no melhor do bem bom, pronto, batem na porta. O que fazer? Maria do Carmo se arruma como pode e vai ver quem é. Porca miséria, era o filho da puta do Gregório. Não sei como desconfiou de alguma coisa, ou então fui solenemente dedado por alguém. E ai começa o diálogo do desespero:

MC: O que foi, seu Gregório?  G: Eu vim trocar a lâmpada. MC: Que lâmpada, seu Gregório? G: A do banheiro.

Quase morri, eu a essas alturas havia me trancado no banheiro. Bem, o Gregório insistiu tanto que a Maria do Carmo abriu-lhe a porta. Ele veio direto para o banheiro. Porta trancada. Ele pergunta para a MC: “Quem está aí?”. Ao que a MC lhe respondeu a primeira coisa que lhe veio à cabeça: “É a Kikuko, ela não está passando bem.”. O velho Gregório era ardido, desconfiado como um cabra da peste não se deu por vencido, bateu na porta do banheiro: “Dona Kikuko, tudo bem com a senhora?”. Lá dentro, não querendo acreditar ainda que tudo aquilo estivesse acontecendo, eu estava assustadíssimo, pois que temia o pior, uma denúncia para a direção do ISSU e eu e a Maria do Carmo expulsos do CRUSP. Eu ainda me viraria, e a coitadinha? Orei aos santos e afinei ao máximo minha voz: “Tudo bem, seu Gregório, não precisa se preocupar”.

Não sei como, deu-se o milagre. Provavelmente ainda muito cabreiro, o velho e zeloso porteiro resolveu aceitar a situação e se retirou. Quando a Maria do Carmo avisou que tudo estava bem, saí do banheiro. Não sabíamos se ríamos ou se chorávamos. Bem, não havia mais clima para as combinadas sensualidades. Saí de fininho, desci com o maior cuidado pela escada de incêndio e sumi. -- Álvaro  602 E

VELHOS TEMPOS, BELOS DIAS

Para desespero de algumas ortodoxas lideranças acabamos todos por nos render às "Jovens tardes de domingo". Eram os shows da Jovem Guarda comandados pelo Roberto Carlos no Canal 7 da Record. Juntávamo-nos às dezenas para assistir a TV naquele canto  do Centro de Vivência. Em pouco tempo as músicas da Jovem Guarda dominavam corredores e apartamentos em assobios e cantorias de cruspianos. Vejo hoje que a questão político-ideológica marcou-nos profundamente, especialmente pela conjuntura imposta pela ditadura, mas no fundo, no fundo, éramos todos um maravilhoso bando de jovens puros e inocentes.

Lembro-me de um fato do qual até hoje rio sozinho quando me lembro. Uma certa vez eu namorei uma namorada do Lauri (aqui também não quero declinar seu nome, se ela concordar ela declina). Foi um namoro curto, provavelmente provocado por ela para fazer ciúmes ao meu querido amigo. Não deu outra, quando eu cruzava com ele no Centro de Vivência ou nos corredores maldosamente assoviava aquela musiquinha do Roberto Carlos, "Estou amando loucamente/ A namoradinha de um amigo meu...". O Lauri ficava putíssimo da vida, mas, pela amizade e pela piada, sua reação não passava de um "Álvaro, você é muito filho da puta!". Grande e querido amigo, que saudades.

Acho que devemos todos agradecer a turma do Roberto Carlos pelas tantas alegrias e belezas com que nos brindaram. Esse verso da música Jovens tardes de domingo é para mim a expressão de meu sentimento cruspiano: 

"Hoje os meus domingos São doces recordações Daquelas tardes de guitarras Sonhos e emoções O que foi felicidade Me mata agora de saudade Velhos tempos Belos dias"

-- Álvaro  602 E

ASSALTOS À DISPENSA DO RESTAURANTE

Como já disse anteriormente, em praticamente todas as férias escolares de meio e de fim de ano a Estiva (núcleo central: eu, Malaman, Mineiro e Sílvio Preto) saía para fazer acampamentos. Nossa região preferida era o Litoral Norte. Como ficávamos em lugares selvagens, era preciso levar muito mantimento. Grana? Ninguém tinha um puto. Sobrava como perigosa alternativa assaltar a dispensa do Restaurante. E quantas vezes fizemos isso... A odisséia iniciava-se no almoço, quando deixávamos uma ou duas janelas laterais do restaurante fechadas, mas não travadas, sabem como é. Bem tarde da noite, driblando guardas e o impagável Gregório, penetrávamos sorrateiramente no recinto. Latarias mil, leite condensado, leite em pó, sardinhas, salsichas, muitas, mas muitas peças de mussarela. Sem falar das latarias de doces e todo o punhado de besteiras que pudéssemos carregar. No dia seguinte, pé na estrada para pegar carona. E assim curtimos grandes aventuras em Ubatuba, Ilha Bela, Castelhanos. Em cada uma dessas, dezenas de casos inimagináveis, como quando eu e o Sílvio Preto ficamos hospedados na mansão do Ciccillo Matarazzo, em Ubatuba, através da amizade que fizemos com um mordomo/cozinheiro chegado em rapazes. Quero aqui deixar registrado que ele se engraçou foi com o Sílvio.

De outra feita, em um assalto ampliado, do qual participavam também Martins, Bolha, Piauí e Paulo Paixão, aconteceu-me uma desgraça. Havíamos já perpetrado o assalto e quando ainda estávamos ali por perto do prédio do restaurante, umas duas horas da manhã, uma viatura policial achou de fazer a ronda no pedaço. Logo que ela foi divisada, correu baixinho de boca em boca o famoso "esconde, esconde, é a polícia". Cada um se escondeu no lugar adequado mais próximo. Eu estava naquele balãozinho que havia na parte frontal do prédio. Não sei se vocês se lembram, havia uma cerca viva separando um canteirinho de mais ou menos 1,5m da parede do prédio. Não deu outra, passei pela cerca viva e me escondi por ali, entre ela e a parede. Havia na parte inferior da parede uma bancadinha de uns 50cm, na qual me sentei aguardando que a viatura fosse embora. Mas quando sentei senti uma coisa estranha, pastosa, cujo forte cheiro então despertado revelou logo sua natureza: uma poderosa cagada humana, daquelas que criam uma casquinha mais escura por fora e por dentro há uma massa amarelada em alta fermentação. Até hoje não posso atinar com o fdp que deu uma cagada naquela bancadinha. Assim que a viatura foi embora levantei desesperado dali, o cheiro era fortíssimo, cheguei a vomitar. Os sacanas dos meus companheiros de assalto se borravam de tanto rir. Não deu outra, a situação era insustentável, tirei a calça, joguei-a fora e fui embora de cuecas para o prédio. Para que nosso porteiro não perguntasse nada e complicasse minha vida, subi pelas escadas de incêndio. Mil banhos, mas fiquei ainda vários dias impregnado daquele cheiro horrível. -- Álvaro 602 E

UMA SONORA PORRALOUQUICE

Acho que já posso contar essa história. Com mais alguns colegas a mantivemos em segredo por muito tempo. Espero que não me traga problemas. Mas aí vai o registro. Todos se lembram daquela invasão militar no CRUSP em que as meninas do prédio D fizeram o Brucutu atolar com tanta água que lhe jogaram em cima com a mangueira de incêndio. Grandes meninas.

Pois bem, eu morava no apt° 602, do prédio E (o verde). Naquela fatídica noite jogávamos pôquer em meu apartamento no aguardo da provável invasão militar. Não deu outra, lá pelas tantas começou a invasão. Barulhos de portas sendo arrombadas, correrias, gritos, enfim aquela zorra estúpida com a qual já íamos nos acostumando. Da janela da sala de meu apartamento dava para divisar o prédio D das meninas, e então percebemos aquela memorável cena: ao longe o Brucutu patinando no barro criado por aquele poderoso jato de água e o desespero infrutífero dos milicos tentando desatolá-lo. Preparávamo-nos para enfrentar a iminente invasão do apartamento quando, diante do ódio àquela violência toda, ocorreu-me tresloucada idéia. Eu tinha um revólver 22 e uma caixa de balas. Carreguei a arma e, como todos ali também irresponsavelmente apoiaram a idéia, por uma fresta escondida da janela comecei a alvejar o Brucutu, obviamente com um baita de um cuidado para não atingir nenhum milico. Outros também aderiram àquela sonora porralouquice. Devemos ter dado uns 20 tiros, e voltei a esconder a arma (aliás nunca mais a procurei, é provável até que ainda esteja por lá. Escondi-a no forro do apto por aquela abertura que havia no teto dos banheiros). Mil juramentos dos que ali estavam de que o fato ficaria somente entre nós. Em seguida o apartamento foi invadido na base da machadada na porta e, como tantos, fomos todos presos.

No dia seguinte, manchete no Jornal da Tarde: Brucutu alvejado com tiros no CRUSP. A notícia dava até o calibre das balas. A indisfarçável deliciosa sensação que sentimos foi indescritível. Heróis da Resistência, foi a mínima condecoração que nos auto-outorgamos. Aconteceram várias, mas essa sem dúvida foi a maior porralouquice em que eu me meti naqueles conturbados tempos. Aqui entre nós, uma irresponsabilidade que poderia ter tido conseqüências terríveis. Conto  o causo para o devido registro, mas não me orgulho dele. Engraçado, eu realmente era um pouco, como se diria, “da pá virada”, mas não era porralouca politicamente falando, não sei como me meti nessa... -- Álvaro  602 E

A FRUSTRANTE CAÇADA DE RÃS (para desespero do Pangaré)

Toda aquela área entre o CRUSP e o prédião velho da Reitoria (Pça do Relógio) era um brejo só nos tempos chuvosos. Todos devem se lembrar da sinfonia noturna do coaxar de sapos, rãs e pererecas. Sempre curti muito caçar e comer rãs. E elas, especialmente nos dias que se seguiam a chuvas, coaxavam convidativamente daquela região. Acertamos então, eu e o Jeová, sair um dia à noite para fazermos uma boa caçada. Preparamos a tralha toda, fisgas, sacos, lanternas de acetileno, e fomos para lá numa determinada noite. Acho que aí pelas 20 ou 21 horas. Grande frustração, não encontramos uma bendita rã. Apenas centenas de enormes sapos. É nessas horas que a maldade imaginativa nos sobe à cabeça. Quase ao mesmo tempo vislumbramos pegar o maior número de sapos possível. O destino: soltar todos no apartamento do Pangaré (nosso querido Di Giorgio, que tinha esse apelido por trabalhar à noite no Jóquei Clube). 

Feita a operação, faltava ainda o extremo gozo do canalha: ver o resultado da canalhice. Eu e Jeová ficamos ali por perto do apartamento do Pangaré, até que esse retornou do trabalho para uma merecida noite de descanso. A cena foi indescritível, quase nos destripamos de tanto rir vendo o Pangaré desesperado tentando tocar os sapos para fora do apartamento, dezenas e dezenas deles, na pia, na privada, nas camas, na base do SHIT, SHIT, SHIT, como se esses fossem um bando de perdidas galinhas. -- Álvaro  602 E

MIL OUTROS “CAUSOS”, MAS ACHO QUE VOU TERMINAR COM MAIS UMA POESIA

Tive a suprema felicidade de viver por mais de três anos em um lugar mágico chamado CRUSP. E de lá ter feito tão grandes e ricas amizades. E uma paixão, com quem, por total coragem dela, acabei por casar: Maria do Carmo. Posso dizer que raros foram os dias em que não aconteceu uma aventura digna de ser registrada e relatada. Por essa amostra de grandes amigos que lá fiz, verdadeiros irmãos, pode-se ter uma pálida idéia das coisas em que me envolvi: Estiva (Mineiro, Malaman, Sílvio Preto e eu), Crioulo, Paulo Paixão, Piauí e Martins (inseparáveis), Lauri, Jeová, Pajera, Pacote, Mane Quatá,  e mais, e mais, e mais....

Foi o sequestro do ônibus da Vani, o “ataque terrorista” ao guindaste que iria derrubar o esqueleto de um novo prédio, o assalto ao apartamento do Saldanha, a invasão do Coseas (quando o Jeová deu um chute na bunda do Fred), a construção da jangada para por na lagoa, os choques com os milicos nas invasões, a preparação das passeatas, as “pingaiadas”, os bailinhos, os namoros; lembro agora de uma peça de teatro, “O Grande Julgamento” que escrevi para  um ShowCrusp, dirigida pelo grande Camões. O jogral que compusemos, eu, Malaman e o Guasco, para o Mineiro cantar a Disparada...

Na verdade, éramos uma família. Uma grande e linda família, fundada nos valores que sonhávamos para a nova sociedade: amor, alegria e compartilhamento. E então termino com mais um poeminha. Abraços, Álvaro.

Dúvidas guerreiras Esse eterno se recusar  A vida Em nuvens brancas passar Esse longo se incomodar  Com as coisas erradas A tantos fazendo penar E esta sempre tardia sabedoria De nos dosar p'ra cada ímpeto Seu possível tempo e lugar, Ou nos tornarão Apenas A vida mais curta, Ou será que, um dia, O Universo Poderemos mesmo consertar?

--  Álvaro  602 E -- dezembro de 1994