Para onde vai a Internet? (texto de 2005)

Carlos A. Afonso (*) -- 21 de julho de 2005

A primeira fase da Cúpula Mundial da Sociedade da Informação (CMSI), concluida na reunião de Genebra de dezembro de 2003, deixou dois temas cruciais em aberto. O primeiro trata de como financiar a implantação adequada das tecnologias de informação e comunicação para o desenvolvimento (TICD, ou em inglês, ICT4D). Isso envolve, sobretudo nos países menos desenvolvidos, a alavancagem nos campos de infra-estrutura, capacitação e sustentabilidade, além da inclusão digital. O relatório final preparado por um grupo de trabalho especialmente criado pela ONU (a Força-Tarefa sobre Mecanismos de Financiamento, FTMF, ou TFFM em inglês) foi oficialmente divulgado em janeiro de 2005.

O segundo tema trata da governança global da Internet -- como criar, melhorar ou adaptar mecanismos globais que permitam tratar dos temas centrais derivados da presença cada vez mais abrangente da Internet na economia, política, sociedade e cultura de todas as nações. Temas como a definição e distribuição de nomes de domínio e números IP, custos de conexão entre países, direito de acesso à infra-estrutura e à informação, liberdade de expressão, segurança e uso adequado etc. Aqui também a ONU criou, conforme o Plano de Ação aprovado na CMSI de Genebra, um grupo internacional para tratar do tema -- o Grupo de Trabalho sobre Governança da Internet (GTGI, ou WGIG em inglês), composto por 40 membros de vários países e grupos de interesse (governos, setor privado, setor acadêmico, organizações da sociedade civil). O relatório final do GTGI (do qual participam dois brasileiros) foi apresentado em sessão pública em 18 de julho em Genebra. Ambos relatórios servirão de insumos para o processo preparatório da segunda fase da CMSI, que culmina com uma conferência internacional na Tunísia, em novembro de 2005.

A governança global da Internet é um tema complexo, que envolve poderosos interesses. Afinal, trata-se de definir ou aperfeiçoar a coordenação global dos diferentes componentes da rede, desde a infra-estrutura até os métodos adequados de eventual supervisão de conteúdo (que envolve assuntos que vão da pornografia infantil ao uso indevido de e-mail para fraudes). Um consenso já existe: do jeito que está, não pode ficar. Não há um foro mundial para estabelecer acordos efetivos relativos à Internet para o compartilhamento justo dos custos de conexão entre países, para definir políticas eficazes contra "spam" e "phishing", para garantir a liberdade de expressão, o direito à informação e muitos outros direitos (e deveres) que, com a presença inevitável da Internet em nossa vida -- mesmo na vida das pessoas que a ela não têm acesso --, passam a ser cruciais.

Um componente fundamental da governança é exercido por uma entidade civil sem fins de lucro criada pelo governo Clinton na Califórnia em 1998 (a Corporação Internet para Designação de Nomes e Números, conhecida pela sigla em inglês ICANN). Esta entidade coordena a distribuição mundial de nomes de domínio de primeiro nível (tanto os globais, conhecidos como gTLDs, tais como ".com", ".net", ".org", “.aero” etc, como os nacionais, ou ccTLDs, tais como ".br", ".iq" etc) através da gerência dos servidores-raíz que permitem associar esses domínios a endereços IP (números que identificam univocamente qualquer computador conectado à Internet) e, com isso, localizar os computadores respectivos em qualquer parte da Internet. A entidade coordena ainda a distribuição mundial dos endereços IP e a adoção dos protocolos de comunicação utilizados pela rede. Esse conjunto de atribuições da ICANN é o que de pode chamar de "governança da infra-estrutura lógica" da Internet.

O controle sobre a ICANN é mantido pelo governo dos EUA através de contratos envolvendo a entidade, o governo federal e a empresa Verisign. Um desses contratos, um memorando de entendimento entre a ICANN e o Depto. de Comércio, expirará no final de setembro de 2006 – significando que a ICANN passaria a operar de modo mais autônomo (se bem que ainda sujeita, como ONG nacional, às leis federais dos EUA e do estado da Califórnia). No entanto, o governo dos EUA acaba de deixar claro, em declaração recente, que mesmo com o fim do memorando, não permitirá que o controle real sobre a infra-estrutura lógica deixe de pertencer aos Estados Unidos, alegando razões de "segurança e estabilidade" da rede. O fato é que o conjunto dos contratos mencionados permite que os EUA tenham base legal suficiente para tomar essa posição.

Por outro lado, uma das demandas mundiais é que a governança da rede passe a ser efetivamente global, democrática, transparente e pluralista – ou seja, com representação de todos os grupos de interesse no processo decisório. Alguns países chegam a defender que a governança da infra-estrutura lógica seja entregue à UIT (União Internacional de Telecomunicação), um organismo da ONU em que cerca de 80 governos e mais de 600 empresas de telecomunicações estão representados, mas que não se caracteriza (como aliás qualquer outra agência da ONU) pela democracia, transparência e pluralismo.

Apesar dos esforços da ICANN para mostrar que é transparente e democrática, alguns resultados de seu trabalho apontam em outra direção, como no caso recente da "redelegação" do gTLD ".net", e no processo de indicação de dirigentes, que é manipulado por membros do próprio comitê de nomeação da organização. A declaração recente do governo dos EUA só contribuiu para aprofundar a percepção mundial dessa dependência da entidade ao governo dos Estados Unidos.

É fundamental buscar organismos globais de governança de novo tipo, que possam funcionar tanto como foros de resolução de disputas, como centros de coordenação, recomendações e normatização sobre os vários componentes da rede. Se isso significa uma única organização ou um conjunto de entidades globais, está em aberto. O GTGI procurou analisar os vários cenários dessa estrutura e propor algumas alternativas para o debate de agora até a Tunísia.

Se há um consenso claro no relatório final do GTGI, é que a governança mundial de qualquer componente da Internet não pode estar sob a hegemonia de um único governo. O que vai acontecer no debate dos subcomitês preparatórios temáticos da CMSI de agora até Túnis, só o tempo dirá, mas é crucial que as entidades civis estejam participando intensamente desse processo para insistir na pluralidade, transparência e democracia como bases centrais de qualquer futuro mecanismo global de governança.

(*) Colaborador da Rede de Informações para o Terceiro Setor (Rits) e membro do CGI.br.