De repente nada mais é divertido. O dr. Gregório avisou, iria anestesiar, era canal. Eu estava ali para obturar o dente e entro nessa. Detesto tudo que me amortece, eufemismo para medo. Medo, mais do que sentira ao ver o quadro na parede do consultório. A foto em tamanho normal do busto de Bolsonaro com a faixa de presidente. Dr. Gregório, um brutamonte, era fanático pelo "mito", logo atinei. Quis voltar em vão. “Sente-se” me sentenciou com voz grave de ordem fascista. Tentei escapar, “quanto custará o serviço?”. “Duzentos e cinquenta por canal”. Fiz as contas, pré-molar, dois canais. Tentei me levantar. “Abre a boca, não mexa”. Estava dominado. Nada mais a fazer. Olhei para suas mãos do tamanho de luva de boxe, seringa com anestésico. A agulha logo mergulhou no saco gengival. Boca semiparalisada com tufos de algodão, iniciava-se a sessão de tortura. Não pelo abrir do dente morto. A psicologia do doutor para distrair o paciente. Aquela conversa que se ouve e somente a um ventríloquo é possível responder. “O que você acha do Lula?...É um canalha”. Tentei dizer que não dava para falar. Fui advertido “Não fecha a boca”. “Ontem apareceu aqui um casal de professores. Insistiam que o Lula foi o melhor presidente. Que ele era preso político! Ora, veja só, o maior ladrão que o Brasil já teve. Ouvia tudo calado, eles continuavam”. Espirrou água na minha boca quase me afoga. Tirou o algodão, “pode cuspir”. Aproveitei, “o doutor viu o enviado do Vaticano foi proibido de visitar Lula e de entregar um rosário que o Papa mandou”. Eu tinha visto uns santos no consultório pensei na religiosidade do doutor. “Mentira! Abre a boca” Encheu-a de algodão, novamente, deixando-me em standby. “É fake news. O cara não era representante do Vaticano. Não era presente do Papa, ele não mandou presente algum”. Me calei, como ser diferente naquele estado? “Fui perdendo a paciência”, voltou a contar a história, “os professores já estavam me enchendo o saco. Honesto para governar ninguém quer. O Bolsonaro pode falar umas bobagens, mas é honesto. Os professores ficaram irritados. Disse lhes que o Lula apodreça na cadeia. Acho que eles não vão mais voltar aqui”. Ele continuava cavoucando meu dente como se estivesse à procura de um tesouro. Certamente, os reais. Confessou. “Só encontrei uma raiz. O outro canal deve ter calcificado. Vou fechar”. Minha alegria se restabeleceu, gastaria 250 reais a menos e seria posto em liberdade. Levantei, olhei-me ao espelho, estava com a boca torta como a do Sylvester Stallone. “Quanto tenho que pagar, então, doutor?”. “Como combinamos. Quinhentos Reais”. "Mas, não foi feito só um canal?" "É. Mas, esse dente tem dois canais, o do senhor é que não tem". Pensei em contestar o cálculo baseado na expectativa futura, como o PIB nacional, sempre superestimado. Preferi argumentar por analogia. “Doutor, honestidade no Brasil é raridade. Fui jantar no “Tradição” sábado passado. Veio a conta, trezentos reais. Conferi. Exatamente, o dobro. Chamei o proprietário e reclamei. Ele pediu desculpas, o caixa tinha errado. É sempre assim, todo mundo só pensa em superfaturar na cara dura”, concluí. De nada adiantou. Paguei o dobro. Como todo bolsonarista não é bom entendedor quando lhe convém. De saída ainda me perguntou: "e o senhor em quem vai votar?" "No Lula" - foi minha vingança.